Esse conto é muito louco!
A VONTADE
A
vontade é um processo de quatro etapas: estímulo, indecisão, decisão e
execução. Eu acrescento um: resultado.
Na grande cidade chamada Condorázia,
habitada por cem mil pessoas, acabava de se formar em psicologia o grande Abrão
Costa Veríssimo Jr, filho único de Abrão Costa
Veríssimo e Piedade Veríssimo. Agora esse fruto pródigo seria um
participante da alta sociedade, sendo denominado apenas como Veríssimo Jr. A
honra da família e o futuro membro do mais digno mundo culto.
Ele iniciaria seus atendimentos na
segunda-feira próxima. Apenas uma paciente, uma mulher chamada Isabela. Idade:
quarenta anos. Mais detalhes: nenhum.
Era tudo o que sabia sobre ela. Estava muito ansioso, finalmente colocaria em
prática o vasto conhecimento adquirido ao longo de seus fervorosos estudos. Quantas
noites sem dormir estudando, quantos livros lidos. Era a realização de um
sonho.
- Freud orgulhar-se-á de mim! – Exclamava
diante do espelho, fitando-se dentro de seus próprios olhos negros.
Esses atos aconteceram no domingo. A noite
passou e finalmente chegou a manhã do dia tão aguardado: segunda-feira.
Feliz, Veríssimo Jr. vestiu seu terno
italiano, gentilmente dado por seu avô paterno,
limpou a lente de seus óculos e colocou-os em seguida. Por fim, penteou
os curtos cabelos escuros e pôs os sapatos pretos, lustros como todo o restante
do consultório novo. Uma sala no melhor prédio da cidade dada por seu pai como
presente de formatura.
Arrumado, o homem, ou melhor, o senhor,
caminhou até o portão de sua casa, por onde sairia para seu primeiro dia de
jornada.
Eram sete horas da manhã. Na casa da
frente Clara saía para ir ao colégio. Ela era uma moleca de quinze anos, linda
como a mais bela das musas. Trajava a saia da escola, com suas sapatilhas
pretas e a camisa da instituição educacional. Ao ver o psicólogo parado a
fitando, acenou-lhe, cumprimentando-o.
Ele respirou fundo, tinha a visto nascer e
crescer. Diversos finais de semana viu-a brincando com as crianças vizinhas
enquanto estudava para o vestibular. Isso havia oito anos. Mas, retomando o que
iria fazer, entrou no seu carro, o qual estava estacionado na rua, e dirigiu
até a sala de trabalho.
Lá o ambiente era lindo. As paredes
brancas sustentavam poucos quadros cubistas. Os sofás, um de frente para o
outro, transformava o local em um sítio aconchegante. Ao lado esquerdo da sala,
uma estante cheia de livros. Todos sobre psicologia, e nenhum outro assunto.
Enquanto a paciente não chegava, ele
sentou-se em sua cadeira e pôs-se a contemplar o local, seu lugar.
Isabela chegou às nove horas. Era uma
mulher atraente e não possuía nenhum anel que denotasse compromisso com alguém.
Também possuía uma voz doce, revelada através do rápido diálogo com a
secretária Gertudres, na sala de espera. Não aparentava problemas.
Mesmo Veríssimo estando solteiro aos
trinta e oito anos, tratá-la-ia profissionalmente. Para tanto imaginaria a
maturidade adquirida quando conseguiu ingressar na universidade, após voltar da
França, onde estudava o idioma local. Esse fato o marcara, pois era um dos
alunos mais velhos a freqüentar as disciplinas do curso de psicologia, e isso o
fazia sentir-se mal. Tivera que realizar o vestibular aos vinte e oito anos!
Que tormento para alguém tão culto. Mas prossigamos.
- Sente-se e fale
sobre o que lhe incomoda, ou melhor, sobre o que quiser! – Afirmou o homem após
ambos estarem acomodados em seus respectivos lugares.
Ela começou a contar sobre sua vaidade,
extrema, seu trabalho na loja de conveniências, sua rotina em assistir novelas,
etc... Quando faltavam dez minutos para o final da sessão, escapou-lhe a
seguinte afirmação:
- Às vezes minha razão não concorda com
certos atos que pratico, não sei explicar. Cuido de um menino, sabe... Sinto um
desejo e após executo. Vendo o resultado sinto fortes arrependimentos, mas
sinto o prazer de ter realizado.
Durante a fala da paciente, o senhor via
imagens de Clara, sempre esperta no jardim de sua casa aos domingos. Linda
moleca. Parecia um transe que tomava conta de seus pensamentos...
- Bem, já é hora de terminar. Até semana
que vêm. - Falou Veríssimo despedindo-se de Isabela.
Nesse primeiro dia não havia mais
pacientes, o jeito era estudar o que ela tinha. Mas o homem, sempre culto, já
definira como “vontade anormal”, isto é, a mulher não seguiria o ciclo normal
desse fator, que seria estímulo, indecisão, decisão e execução. Inferência
pessoal. O que ela fazia? O que significava o menino? Que prazer era esse?
Deveria descobrir aos poucos, como um senhor equilibrado.
Durante o solitário almoço, o psicólogo
tentou colocar-se no lugar de Isabela. Imaginou-se em uma casa com uma menina a
brincar até o momento em que ele resolvesse...
Não, que pensamento indigno! Não poderia
estar acontecendo isso, seria um crime! Nesse caso não deveria ser resolvido
por ele, mas por uma delegacia. Intolerável, repugnante e inimaginável. A
mulher não poderia sentir prazer com essa maldade. Clara? Deveria parar de
pensar nisso. Tinha vinte anos a mais que a doce garotinha. Controlaria suas
forças instintivo-emocionais. Era um grande homem, um senhor.
Assim almoçou. O dia continuava passando.
As pessoas agiam, escrevendo suas histórias vitais enquanto um vento regia a
sincrônica respiração.
Após a tensa tarde, Veríssimo
dirigiu-se a sua casa e ao chegar a frente ao seu portão viu que a musa de seus
pensamentos repreendidos beijava ardentemente um outro jovenzinho, que após o
ato afastou-se dela até sumir. Clara, percebendo o olhar fixo de seu vizinho
Abrão, acenou-lhe como de costume.
Sentia o homem dentro de si uma confusão
de sentimentos. Sua mente lembrava-o do filósofo Nietzsche colocando que aquilo
que se faz por amor está além do bem e do mal. O corpo pedia uma execução do
estímulo que brotava da sua mente. Ela era linda e acabava de virar-se para
entrar em seu lar. “Cuido de um menino... sinto o prazer de ter realizado”,
ouvia Veríssimo nitidamente, latente em sua memória. Clara. Isabela. Um homem.
Clara permanecia na calçada.
Impulsivamente ele chamou a menina pedindo que ela o acompanhasse até sua casa.
Seria rápida a visita. Sorridente e com toda a sua inocência, a menina aceitou.
Os dois entraram silenciosamente pela porta. Depois de cerrada, o vespertino
tornou-se noite e continuou a enfeitar o
escuro céu. As estrelas formavam diversos desenhos e pareciam dançar ao redor
da lua. O vento quente, típico de uma noite de verão, era um convite para um
brinde apaixonado. Uma madrugada longa.
Na manhã seguinte, às sete horas, apenas
Abrão saiu do lar para cumprir sua rotina de trabalho. Ninguém mais veria a
linda moleca.
Quando chegara ao consultório, para sua
surpresa, encontrou Isabela sentada à sua espera. Chorava muito, mal podia
respirar. Suas mãos tremiam e a palidez cobria seu semblante vaidoso. Algo ruim
deveria ter acontecido. Sério, pediu para que ela o acompanhasse.
Ambos entraram no espaço de consultas e a
mulher iniciou seu desabafo:
- Não pude esperar até a próxima semana,
aconteceu algo horrível. Lembra que eu falei sobre um menino? Ele tem quinze
anos e hoje fugiu de casa após saber, por intermédio de uma coleguinha, que sua
grande paixão também o fizera. Não sei se realmente fugiu, apenas ninguém sabe
nada sobre ela, nem pais, nem a escola. Talvez seja cedo para pensar no pior.
Não sei se você a conhece, seu nome é Clara Silva.
E prosseguiu emocionada, entre soluços:
- Sempre fui exagerada na vaidade e
chamava muita atenção, pois me dava prazer. Isso me fazia sentir culpada, pois
me sentia superior a todos. Esse era o maior problema que possuía e que me
levou a lhe procurar. Hoje com esse acontecimento acordei curada. O que faço?
Clara. O garoto de quinze anos, a musa,
Isabela, um homem, a pintura mais imperfeita de um pintor. A moleca não havia
fugido e o psicólogo tinha certeza
disso. A noite passada pesava-lhe na consciência, mas sentia o prazer de ter
realizado sua vontade, e por amor.
- Acho que você não precisa mais de mim.
Está curada. Pode partir e tente entender: o que se faz por amor está além do
bem e do mal. – Proferiu o senhor Veríssimo, o psicólogo, à mulher, que foi
embora sem mais voltar.
Passou o tempo. Os livros foram mantidos
na prateleira. O consultório foi fechado e ninguém mais pisou naquele lugar. A
casa de Veríssimo fora abandonada, sumindo entre os arbustos que se ergueram no
jardim. Clara ficou na memória de Abrão, sua eterna musa fria e insolente, que
não compreendeu até o final o grande amor que ele sentia. Nem retribuíra!
Queria esquecer aqueles momentos. Não conseguia.
Olhando-se no espelho retrovisor, o
psicólogo percebeu, em seu carro antes de conduzir-lo de forma a sumir para
sempre, que ele era o senhor da cultura, Veríssimo Jr., a grande honra da
família, um homem, um demente e apenas mais um animal.