domingo, 15 de agosto de 2021

QUIZ DO CONTO BAPHOMINHO ENCONTRA O CHYGADCARIUS-OIDS

 Como o Baphominho não tem Blog (por hora), vou emprestar o meu para ele postar o link do QUIZ da historinha que ele postou, escrita pela maravilhosa autora Maria F. Dutra, ilustrações do grande Adriano Siqueira:


https://pt.quizur.com/trivia/baphominho-encontra-o-chygadcarius-oids-Jgjl


Para ouvir os episódios da saga deste monstro marinho assustador, clique nos links abaixo:


Ouçam os contos que ja estão narrados do assustador do Monstro Marinho Chygadcarius-Oids 


Episódio 1

https://youtu.be/o2SAFYmNOIU


Epsódio 2

https://youtu.be/Yg4zX5hPEVQ


Episódio 3

https://m.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-047-produ%C3%A7%C3%A3o-e-apresenta%C3%A7%C3%A3o-s%C3%A9rgio-pires/


Episódio 4

https://www.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-048-produção-e-apresentação-sérgio-pires/


Episódio 5

https://m.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-049-produ%C3%A7%C3%A3o-e-apresenta%C3%A7%C3%A3o-s%C3%A9rgio-pires/


Episódio 6

https://www.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-050-produção-e-apresentação-sérgio-pires/


Episódio 7

https://www.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-051-produção-e-apresentação-sérgio-pires/


Episódio 8

https://www.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-052-produção-e-apresentação-sérgio-pires/


Episódio 9

https://m.mixcloud.com/radioputzgrila/creepy-metal-show-053-produ%C3%A7%C3%A3o-e-apresenta%C3%A7%C3%A3o-s%C3%A9rgio-pires/


Produção do banner

@adrianosiqueiraescritor

Baixe o app da Rádio Putzgrila!! @radioputzgrila

@creepymetalshow

Personagem e escultura

@maria_dutra

Narração

@sergiopires83

Rádio Putz Grila


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sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Interseção entre dois universos

                Ganhador do 2º Lugar na modalidade CONTOS no Concurso Regional de Contos, Crônicas e Poesias Oscar Bertholdo, originalmente o texto foi escrito em colunas, contando paralelamente duas versões para uma mesma situação: olhares cruzados ao atravessarem a rua. O traço representa a mudança de eu-lírico.

               Eu lembro bem daqueles olhos, intensos, negros. O calor, a textura, o sabor da pele. Os longos cabelos soltos aconchegando-se entre nossos corpos. / Eu lembro bem daqueles olhos, intensos, claros. O calor, a textura, o sabor da pele. Os cabelos desalinhados escondendo-se entre meus dedos.

            Eu estava por aí, trilhando os passos da rotina e degustando o sabor amargo da monotonia. Simples assim: acordar, sair sem observar o sol, vestir-se com pressa, ir até a parada de ônibus. Aguardar o transporte, chegar ao trabalho, sair do trabalho. Mais transporte público, mais espera. Cansaço, banho, jantar e sofá. / Eu estava por aí, flutuando envolta em  rotina e degustando como café da manhã a solidão de cada dia. Simples assim: acordar, sair sem observar o sol, vestir-se com pressa, batom, escova, olhada no espelho, ir até a parada de ônibus. Aguardar o transporte, chegar ao escritório, sair do escritório. Mais transporte público, mais espera. Cansaço, banho, jantar e celular.

            Mas por um momento, a grande avenida virou beira da praia. Os prédios se tornaram árvores e as pessoas pássaros. Os carros transformaram-se em brisa da manhã e todo o meu corpo foi tomado pela visão mais intensa da minha vida. De repente o mundo parou e eu só vi ela. Seu rosto, seus olhos que me tragaram para um universo paralelo. O semblante de um anjo emergindo do fogo, de um sinal concreto de paz, de força, luz e vida no meio da tormenta. / Mas por um momento, a grande avenida virou um campo largo. Os prédios se tornaram árvores e as pessoas nuvens. Os carros transformaram-se em riacho e todo o meu corpo foi tomado pela visão mais intensa da minha vida. De repente o mundo parou e eu só vi ele. Seu rosto, seus olhos que me tragaram para um universo paralelo. O semblante de um tornado emergindo na estrada. De um sinal concreto, desconexo, de força, luz e vida no meio da tormenta.

            O tempo passou e estávamos nos amando. Sua respiração tão próxima ao meu pescoço, suas unhas agarrando-se às minhas costas como uma pantera, seus lábios umedecendo meus pelos mais ínfimos. Minha nuca, sua nuca. Minha mão mergulhando nos mistérios debaixo de sua saia. Mergulhados um no outro, misturando corpos, almas e ilusões. / O tempo passou e estávamos nos amando. Diversas cores, em milhares de tons rubros. Uma mistura de dor e desejo, coragem e medo. Mistura de corpos, almas e ilusões.

            Como ela era linda em sua plenitude. No seu jeito de falar, ou no silêncio de seu beijo. Na forma como reclamava de tudo, mas não se queixava de nada. A forma que mordia meu beijo, e acariciava minhas ansiedades. / Como ele preenchia minha vida, dava sentido e direção pra estrada que eu antes seguira sozinha. Bebia da minha saliva e mastigava minhas palavras, sonhos e ansiedades. O jeito que olhava em meus olhos e... Eu nunca saberei descrever perfeitamente aquele olhar. 

            Mas por um momento, a praia virou avenida, as árvores prédios e os pássaros pessoas. A brisa da manhã tornou-se fumaça, rodas e motores. De repente o mundo girou, rodou e esmagou minha paz. Aquele semblante, como numa visão sedenta, tornou-se um anjo desaparecendo no fogo. Ela passou por mim, enquanto cruzávamos a avenida. Lado a lado nos olhamos, num olhar que durou o tempo de toda a possibilidade de uma existência. / Mas por um momento, o campo largo virou avenida. Nuvens e árvores viraram pessoas e prédios. Riachos viraram rodas, motoristas e poluição, nessa visão mais intensa da minha vida. De repente o mundo girou, rodou e esmagou as imaginações de uma existência. O semblante de um tornado que passou no meu coração. Das coisas que poderiam ser. Ele passou por mim, enquanto cruzávamos a avenida. Lado a lado nos olhamos, num olhar que durou o tempo de toda a possibilidade de uma existência.

        Eu estava atrasado, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato posterior, ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou sempre atrasado, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais. / Eu estava atrasada, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato posterior, ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou sempre atrasada, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais.

            Aqui no meu quarto, descansando do dia, assisto a um programa de televisão. Olho pela janela e fico imaginando se ela chegasse agora. Se ela simplesmente desembarcasse, nesse momento que garoa, na frente do meu prédio. Se ela soubesse meu andar, meu número do apartamento. A campainha tocasse. Ela subiria molhada, eu a envolveria em meu casaco e a levaria até minha sala. Aquela pele arrepiada do frescor da água, acalentando-se com uma xícara de chá. / Aqui no meu quarto, descansando do dia, assisto a uma série. Olho pela janela e fico imaginando se ele chegasse agora. Se ele simplesmente desembarcasse, nesse momento que garoa, em frente ao meu prédio. Se ele soubesse meu andar, meu número do apartamento. A campainha tocasse. Ele subiria com flores, eu o envolveria em meu abraço e o levaria até minha sala. Minha pele arrepiada, seu olhar envolvente, momentos em que os olhos falassem mais que a voz. Acalentando-se, ele,  com uma xícara de chá.

           Conversaríamos sobre o dia, eu beberia de cada palavra que saísse do seu coração. Ela estaria comigo para jantar. Faria minha refeição olhando em seus olhos, sorrindo pelas besteiras que eu falasse. / Conversaríamos sobre o dia, eu beberia de cada palavra que saísse do seu coração. Ele estaria comigo para jantar. Faria minha refeição olhando em seus olhos, sorrindo pelas besteiras que eu falasse.

E nos casaríamos. Ela deixaria suas roupas jogadas na beira da cama cada vez que fosse trabalhar. Eu esqueceria o litro de leite vazio na mesa, e sempre discutiríamos sobre isso. Teríamos que dividir a televisão, e entrar em acordo nos dias de jogo. Ela receberia uma blusa de renda no nosso primeiro aniversário, a qual ela usaria no nosso jantar com os amigos. Ela teria medo do escuro, e eu de tempestades. E nos amaríamos, como dois adolescentes, entre discussões e cenas de amantes apaixonados. / E nos casaríamos. Ele deixaria a toalha molhada jogada na beira da cama cada vez saísse  do banho. Eu esqueceria uma janela aberta, e sempre discutiríamos sobre isso. Teríamos que dividir a televisão, e entrar em acordo quanto que série ver. Ele faria uma surpresa no nosso primeiro aniversário, a qual eu nunca esqueceria. Ele teria medo de crises econômicas, e eu do desconhecido. E nos amaríamos, como dois adolescentes, entre discussões e cenas de amantes apaixonados.

 E isso tudo o mudou. No dia seguinte pediu as contas do emprego que não gostava, marcou uma viagem e, como quem voltasse de um coma, Inscreveu-se no vestibular e, posteriormente, ingressou na faculdade de administração. E agradeceu, como quem recebe um presente inesperado, mas sempre quisto, que a paixão faz o mundo girar para o lado oposto, acorda os sentidos e modifica a realidade. / E isso tudo a mudou. No dia seguinte pediu as contas do emprego que não gostava, marcou uma viagem e, como quem voltasse de um coma, largou a faculdade de administração, desejo ardente de seu pai para fazer um curso de teatro. E agradeceu, como quem recebe um presente tão esperado, que a paixão faz o mundo girar para o lado oposto, acorda os sentidos e modifica a realidade.


terça-feira, 20 de julho de 2021

Conto (terror): As mãos de Berenice

 Olá povo da escuridão! Hoje quero postar o vídeo, com a narração do grande Sérgio Pires (apresentador do programa Creepy Metal Show - rádio Putzgrila). O conto é "As mãos de Berenice".

        Ter uma pessoa para fazer os serviços domésticos nunca esteve nos planos de Flávia e de seu marido Vítor, hipótese esta descartada com inúmeros argumentos das áreas financeiras, trabalhistas, afetivas e sociais. Da mesma forma, a mudança para uma casa muito maior que aquela onde o casal morava anteriormente, e a descoberta do caso extraconjugal do marido com uma colega de trabalho dele também não tinham sido imaginadas. Para compensar o erro cometido, Vítor começou a tratar a esposa com todos os privilégios e regalias que esta poderia ter, permitindo-a abandonar o emprego e desfrutar de muito mais dinheiro do que já teve em toda a vida. 

        Neste contexto, a contratação de Berenice, uma senhora de meia-idade, franzina, mãos marcadas pelo ofício de limpar desempenhado desde menina, foi concretizada. A entrevista foi feita pelo casal, na sala de estar: 

        - Precisamos de uma pessoa confiável, que permaneça na nossa residência pernoitando, de segunda a sexta-feira, tendo o final de semana inteiro livre. 

        - Eu posso morar com vocês caso necessário. Atualmente pago aluguel. Vivo sozinha... Não tenho parentes no Estado. Tenho disponibilidade total. 

        O casal, através de uma troca de olhares, demonstrou achar interessante a ideia de ter uma doméstica vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana dentro da casa, disponível para atender a todas as demandas e caprichos. Vítor continuou a entrevista: 

        - Muito bem, temos no porão, passando a lavanderia, um quarto com banheiro e, ao lado, uma cozinha compacta. Pode morar lá, não cobraremos aluguel do espaço, nem descontaremos do salário. Claro, em troca você nos atende sempre que for necessário, e se quiser passar os finais de semana em outro lugar, nos avise uns dias antes. 

        - Sim, eu topo. 

        - Você vai precisar comprar os próprios alimentos, quando quiser fazer uma refeição só para si. 

        - Sim. 

        - Seu pagamento vai ser de um salário mínimo e meio, já com os descontos. 

        - Muito obrigada. Nunca recebi tanto dinheiro na vida. 

        O salário a ser pago para a empregada ainda não tinha sido conversado entre Flávia e Vítor. Ela achou a oferta generosa demais, e começou a se questionar se o marido já não a conhecia, se talvez ela fosse mãe de alguma amante, ou até amante, hipótese última que logo foi descartada: geralmente suas amantes eram jovens adultas, altas e loiras. Vítor sabia que, mesmo ganhando muito como CEO, juntando às despesas da esposa, o pagamento pesaria no final do mês, mas seria de grande valia para jogar na cara de Flávia quando esta relembrasse a traição: “eu até pago uma empregada para você não fazer mais os serviços domésticos, sou um bom homem”. 

        - Por favor, então assine este termo. Aqui consta o que combinamos, e nas observações acrescentei que você morará conosco, ocupando umas peças no porão. 

        Com bastante dificuldade em traçar sua assinatura no papel, Berenice escreveu seu nome com letras maiúsculas de imprensa, devolvendo a folha para Vítor. 

        - Berenice, você poderia começar amanhã? – perguntou Flávia. 

        - Sim, posso. Estarei aqui às oito horas da manhã, com minha mudança. 

        - Você precisa que alguém busque suas coisas? 

        - Não precisa, o pouco que tenho cabe no porta-malas de um taxi. Obrigada. 

        O casal acompanhou a senhora até a porta da casa e ficaram vendo-a seguir, a pé, até a parada de ônibus. Ao fecharem a porta, os rostos até antes simpáticos e receptivos se fecharam. Flávia logo cuspiu seus pensamentos na cara do marido: 

        - Na mínima é mãe de alguma amante sua. Pagar tudo isso para uma pessoa que vai morar nesta casa, comer nossa comida, gastar nossa luz e água? Só pode ser favor para algum rabo de saia! 

        - Não, juro que não! Você sabe que nunca mais vou cometer nenhum deslize. Nunca a vi na vida. Ela respondeu ao anúncio da internet. Só. 

        - Não sei se acredito em você... 

        - Acredite sim! Você é a mulher da minha vida. 

        O silêncio tomou conta do ambiente. Berenice, no dia seguinte, já se tornara moradora da casa de Flávia e Vítor, e logo se pôs a limpar, com atenção aos detalhes, cada canto da grande residência. 

        Os dias foram passando. Flávia acompanhava de perto tudo que a empregada fazia, desde o amanhecer, preparando o café da manhã para o casal, a organização de rotina, refeições, até quando esta descia ao porão para descansar, à noite. Ambas, sozinhas durante a semana, trocavam poucas palavras, com as conversas resumidas ao cardápio do dia e tarefas a serem realizadas. Cada vez que Flávia observava a senhora, imaginava ela sendo a mãe ou tia de alguma amante de Vítor, e como uma coisa leva a outra, assistia à reprise do seu marido deitado sobre o corpo da última amante, no sofá do escritório onde ele trabalhava. Se Flávia soubesse o que presenciaria, nunca teria nem cogitado fazer uma visita surpresa ao homem na hora do almoço. Mas, se nunca tivesse feito isso, não descobrira a traição. Sentada no sofá, olhando para um ponto fixo na lareira, Flávia foi interrompida pelo toque suave da mão magra de Berenice em seu braço. 

        - Com licença, a senhora está bem? 

        - Estou... Estou. 

        A empregada baixou a cabeça e voltou a tirar o pó dos móveis. Flávia, se sentindo mentalmente cansada, chamou: 

        - Berenice, sente naquele sofá ao lado. Quero conversar com você. 

        Berenice prontamente atendeu ao pedido, ainda segurando o espanador com suas mãos tísicas e enrugadas. 

        - Berenice, você já foi traída? 

        - Senhora, sim. Meu único companheiro me enganava, saia com outras mulheres, e fez isso até o fim da vida dele, quando um dos maridos traídos o matou, no bar perto de casa – respondeu a senhora, com os olhos mareados. 

        Flávia voltou a ficar com o olhar fixo, distante, mas desta vez parado nas mãos da empregada, que apertava e girava lentamente o cabo do espanador. Sentindo que o assunto trouxe à casa um mal-estar, Berenice pediu licença e voltou a espanar os móveis. A esposa lembrou-se dos dedos do marido, submersos na blusa da amante, enquanto trocava carícias e intimidades sobre o sofá da empresa. E mesclava suas memórias com as mãos que lhe causavam repulsa: as de Berenice. Para Flávia, as da senhora eram típicas de quem nunca se valorizou na vida, devotada a limpar a sujeira dos outros. E que, talvez, tivessem segurado no colo uma loira jovem e linda que, naquele momento, estaria aos beijos com Vítor. 

        Duas semanas se passaram. Flávia se fechara mais e mais dentro de si, misturando fatos e suposições. Numa noite, enquanto o casal esperava a empregada servir um ensopado, Vítor recebeu uma ligação que o fez mudar de cor, silenciando rapidamente o telefone. 

        - Quem estava te ligando? 

        - Não reconheci o número. Certo que era telemarketing. 

        - Mas neste horário? 

        - Amor, já falei que mudei. 

        Berenice aproximou-se da mesa e foi descendo a panela com a sopa quente entre o casal, mas quando esta estava quase tocando a superfície, as mãos da empregada perderam a força, e com o impacto do objeto, respingos voaram sobre os três: 

           - Que é isso Berenice! Você me queimou! – gritou Flávia, levantando-se com raiva. 

        - Eu sinto muito. – desculpou-se Berenice, secando suas mãos, também atingidas pelo caldo fervendo, no avental. 

        - Flávia, tenho certeza que ela não fez por querer. Vou buscar uma pomada para tratar nossas queimaduras – anunciou Vítor. 

        - Quanta gentileza, Vítor! Primeiro uma ligação misteriosa, depois ela “perdeu a força”. Que interessante... 

        - Flávia, quanta besteira! 

        - Besteira? Você se grudando na loirinha do trabalho é que foi besteira! Fala a verdade, tá saindo com que colega agora, grande CEO? 

        O marido deu as costas para a mulher que esbravejava, retornando com a pomada e dando um pouquinho do medicamento primeiro para Berenice, depois para a esposa. 

        - Vamos voltar a jantar. Berenice, vá descansar. 

        Flávia nem quis continuar a refeição, e subiu ao primeiro andar, batendo todas as portas que cruzara. Berenice desceu para o porão e Vítor jantou sozinho. Antes de dormir, ele foi até o quartinho da empregada, pedir desculpas pela grosseria da esposa: 

        - Sinto muito, Berenice. Ela está ainda chateada comigo. 

        - Tudo bem, entendo. Obrigada pela gentileza de vir falar comigo. 

       - Eu que agradeço pela compreensão. Boa noite. 

        - Boa noite. 

        Flávia, escondida no topo da escadaria, só observava Vítor retornar do porão, na escuridão da casa, e dirigir-se ao quarto. E tudo ia ficando cada vez mais claro: ela era sim, mãe de uma amante que ainda não sabia quem era. Aquelas mãos nojentas e inúteis criaram uma linda menina, que se tornou a mais nova loirinha de seu marido mentiroso. 

        Planos começaram a surgir na cabeça da mulher. A última semana mostrou a Vítor e Berenice uma Flávia magicamente colaborativa, simpática e prestativa. Ela fez questão de ajudar a empregada em diversos momentos, inclusive riram muito fazendo biscoitos para quando o marido chegasse cansado do trabalho. No domingo à noite chovia muito, e após uma refeição alegre, com direito a Berenice ocupar a mesma mesa que os patrões, um tanto embriagado o marido decide ir dormir. 

      - Obrigado pela companhia, espero minha linda mulher no quarto o quanto antes. Berenice, bons sonhos. 

        - Obrigada, senhor Vítor. Para você também. 

       Ao perceber que o esposo desaparecera na escadaria, Flávia abraçou Berenice por trás, falando ao pé do ouvido da senhora: 

        - Obrigada por estar fazendo parte da nossa vida. – Uma das mãos de Flávia largou a senhora por um momento, retornando rapidamente com um pano que foi colocado com força sobre o nariz da empregada. 

        - Bons sonhos. 

          No dia seguinte, o marido estranhou que Flávia havia preparado o café da manhã, e questionou:

         - Cadê Berenice? 

         - Nesta semana eu a deixei viajar para o Mato Grosso, visitar uns parentes. Ah, desculpa por não ter te falado. - Ela merece né! Sempre tão querida. 

          - Merece. Quando Vítor saiu, Flávia desceu até o porão e abriu o cadeado que prendia Berenice a uma coluna no quartinho. 

         - Saia daí sua inútil, e limpe a casa. 

       Berenice, com os olhos inchados de tanto chorar, estava com os pés presos por correntes, e na extremidade de seus antebraços, faixas apertadas ocupavam o lugar que outrora era das mãos. 

         - Sentindo falta das suas mãos? Tadinha! Como vai acariciar os cabelos loiros de sua jovem filha?

          - Dona Flávia, eu não tenho filha. 

         - Não minta. Ela deve estar agora mesmo debaixo do corpo do meu marido, deixando-o ofegante. 

       - Dona Flávia... 

       Pelos cabelos, a esposa arrastou Berenice até a sala de estar, colocando- a de quatro diante de um balde cheio de água e desinfetante, e um pano. 

          - Esfrega este chão! 

         - Dona Flávia, estou cada vez mais fraca. Minhas mãos... – Berenice chorava e gemia de dor. As ataduras não iam mais dando conta de estancar o sangue da mutilação. 

          - Você vai limpar, mesmo que com a boca! – Flávia retirou o pano do balde, e enfiou na boca da empregada, empurrando a cabeça dela contra o chão. 

         - Esfregue! 

       O corpo de Berenice, que sangrou por horas, foi esvaindo-se de vida e, no meio da sala, ela morreu. Sem demonstrar remorso, a esposa arrastou o cadáver até o jardim dos fundos, e jogou-o num velho poço artesiano desativado. Com raiva, limpou todos os vestígios de sangue e aguardou o marido, no final do dia. 

        Durante o jantar, Vítor percebeu que a mulher não parava de mexer na gola da camiseta, puxando-a para frente. 

        - Amor, você está bem? 

       - Sim, só acho que esta camiseta está me apertando. Quer saber, vou trocar por uma com uma gola mais aberta. 

       - A Berenice está fazendo falta. Você sabe quando ela volta? – perguntou Vítor. 

      - Ela não disse quando voltaria. 

       No quarto do casal, marido e mulher dormiam quando o relógio marcou meia-noite. Flávia acordou sentindo gosto de desinfetante na boca, e uma sensação de quem estava tendo o pescoço apertado. 

      - AAAAAH! 

      O grito acordou Vítor, que rapidamente acendeu a luz e sentou na cama: 

      - O que houve, amor? 

      - Não sei, sinto algo apertando meu pescoço. 

     - Você está desde a janta sentindo isso. Deve ser ansiedade ou mera impressão. Vamos voltar a dormir. 

       - Talvez seja psicológico mesmo – concordou Flávia. 

      Uma hora da madrugada, novamente ela acordou em pânico. 

       - Eu sinto algo apertando meu pescoço. 

         - Por favor, Flávia! Eu preciso trabalhar amanhã cedo. 

         Duas horas da madrugada, Flávia vai saindo do mundo dos sonhos com a carícia de dedos finos em seu rosto, que aos poucos vão se tornando arranhões que ardiam. Vítor, novamente acordado por um grito, ligou a luz e viu o rosto da esposa todo marcado por unhas. 

       - Meu Deus, Flávia! O que você se fez? 

       - Eu não fiz nada! Meu rosto arde! 

      - Você está toda arranhada, inclusive está sangrando um pouco. Pare com isso, preciso dormir! 

       A esposa foi até o banheiro do quarto, e ao olhar-se viu exatamente o que Vítor descrevera: marcas horizontais que escorriam de sua testa ao pescoço. Imediatamente ela lembrou-se de que havia deixado as mãos de Berenice no quarto do porão, cômodo que esquecera de limpar. Vítor voltara a dormir rapidamente. 

       Sem fazer barulho, ela desceu até o porão e se deparou com o quarto todo ensanguentado. Sangue agora que estava seco pelo chão, cobertas e paredes. As mãos da empregada não estavam em lugar nenhum. 

       - Eu juro que deixei aqui no chão! – a mulher repetia para si mesma. 

    Flávia procurou e procurou. Três horas da madrugada. Cansada da busca, a esposa acabou adormecendo sobre os lençóis embebecidos no sangue de Berenice, sentindo-se naufragar em seu próprio feito: em sua vitória sobre o marido traidor e a mãe de sua amante. 

       Três e meia da madrugada, Flávia foi acordada por dedos magros e enrugados comprimindo seu pescoço. Quanto mais ela se debatia, mais o ar parecia esvair-se. Tentando se livrar do sufocamento, ela procurava desesperadamente os braços inimigos, mas era inútil. Eram somente as mãos: as mãos de Berenice.

sábado, 24 de abril de 2021

Conto terror: Você ainda não sabe

 Este conto foi narrado por Sérgio Pires, para ser transmitido no programa Creepy Metal Show, na Rádio Putzgrila: agradeço de coração pelo apoio!


O link para ouvir a narração é



        Todas as madrugadas, na mesma hora, Rita acordava com sede. Era incrível, 3h30 em ponto o sonho terminava, um cachorro começava a latir, um barulho grande era ouvido pela casa e lá estava a mulher, desperta.
        E a sede era tanta que não tinha como procrastinar. Era levantar, descer o lance de escadas, passar pela sala, chegar na cozinha e beber um copo de água. Depois a noite prosseguia, os sons cessavam, os cachorros dormiam e os sonhos voltavam. Durante o café da manhã, eram sempre as mesmas confissões:
        - Amor, mais uma vez acordei às 3h30 com sede – ela desabafava com o marido.
        - De novo!
        - Sim.
        - Que saco... Amor, eu vou trabalhar hoje até mais tarde. Temos que terminar a instalação da rede elétrica do novo supermercado que vai abrir segunda-feira. Mas qualquer coisa me ligue.
        - Tá bom, vou ficar vendo séries. Te espero acordada.
        - Acho que vai levar a madrugada toda. Temos muito o que fazer ainda. Estamos atrasados e o contrato precisa ser cumprido.
        - Seu chefe precisa contratar mais funcionários.
        - Mão fechada como ele é, nunca vai!
        - Te amo. Se cuida.
        - Pode deixar. Também te amo.
        Rita gastou sua última sexta-feira das férias do trabalho organizando a casa, tirando o pó dos móveis e lavando o chão. Não era o programa mais divertido, mas de qualquer forma os dias anteriores foram bem aproveitados com passeios pela cidade e visitas a amigas e parentes.
        A noite chegou. Depois de um banho relaxante, e de vestir sua camisola, Rita deitou-se na cama e colocou uma série para assistir. Ela gostava de ver romances adolescentes, por mais que sua vida adulta já tivesse começado há alguns anos. As horas passaram e o sono chegou de mansinho. A televisão desligou sozinha depois de um tempo, e ela adormecera por cima das cobertas.
       Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Poucos segundos depois, os cachorros latiram e batidas começam a ser ouvidas na porta de entrada.
        - Não acredito que o Fábio fez de propósito chegar neste horário. Ele vai ver só!
Rita desceu as escadas rapidamente e abriu a porta. Não podia ser outra pessoa, pois ela teria que ter aberto o portão de entrada, ou pulado a alta cerca eletrificada que protegia a casa. Ela não viu ninguém.
        - Amor, onde você está?
        ...
        - Amor, que brincadeira sem graça! Cadê você.
        Um barulho forte veio da cozinha, os cães latiam com raiva. Mas quase todos os dias esses sons surgiam na madrugada, nem valia o esforço de se preocupar. Agora Fábio enchendo o saco, isso sim não poderia ser ignorado.
        - Quer saber, cansei, vou dormir. Você tem chave, entre quando cansar dessa palhaçada.
        A mulher trancou a porta, voltou para o quarto e deitou-se na cama. O celular começou a tocar. Era o marido:
        - Alô, Rita?
        - Amor, para de brincadeira, entre logo!
        - Linda, como assim? Eu ainda estou no trabalho. Só queria saber se estava acordada neste horário. Eu nem ia deixar chamar muito, mas como atendeu, tenho certeza que, para variar, acordou na hora da água – falou soltando uma tímida risada.
        - Por hoje chega né. Me deixa dormir. Boa noite.
        - Boa noite.
        Um forte barulho de passos pesados se aproximavam pela escadaria, subindo até o quarto onde ela estava. Tudo ficou escuro...
        ...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede.
        Sem fazer barulho, desceu as escadas e foi até a cozinha, ouvindo os cachorros uivando no terreno da vizinha. A mulher abriu o balcão aéreo, pegou um copo, ficou de frente à torneira, encheu-o de água e bebeu. Ao se virar, viu uma moça com o rosto esfumaçado que a imitava. Ela estava vestida com uma camisola amarela, com o tórax e abdome repletos de perfurações, jorrando sangue pelos ferimentos o qual escorria pelas pernas e empoçava no chão.
        Rita queria gritar, mas ficou completamente paralisada. Ela tentou piscar, tentando descobrir se era um truque da mente, mas a figura assustadora permanecia estática diante dela, repetindo com uma voz baixa, lamentosa e pesada:
        - Você ainda não sabe...
        ...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede. E os dias, semanas e meses seguiam sempre iguais, resumidos a madrugadas.
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela descia as escadas, pegava o copo, enchia de água, bebia...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. A imagem de Fábio estava cada dia mais apagada, como se o tempo o diluísse entre os móveis do quarto.   Descer as escadas doía, a água não matava mais a sede...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou, e ao passar pelo espelho se viu com a camisola amarela. Descendo as escadas, sentido muita dor no corpo. Tocava-se. Tinha medo de ligar a luz. Sua roupa estava molhada. Na cozinha, o copo, a água. Mas tudo estava bagunçado, fora de lugar, cheirando a podridão...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava... E lá estava Rita, desperta. Desceu as escadas, chegou na cozinha, ligou a luz e caída no chão viu-se sem vida, sangrando no piso enquanto uma sombra escura saltava pela janela. Uma sombra que cheirava a ódio e maldade. O corpo doía mais e mais, e as feições da presença oculta se tornaram nítidas. Rita estava diante de si mesma. O tempo todo. A aparição abriu um sorriso misterioso no rosto e esticou os braços para frente, chamando a mulher com as mãos:
        - Agora, finalmente, você sabe...

domingo, 14 de março de 2021

Boitatá Moderno

 Aproveite esta releitura da lenda do Boitatá. Você pode assistir a narração feita por Sérgio Pires, da rádio Putzgrila, no link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=HOddnjTmkaY

 

     Jaqueline estava ansiosa para, finalmente, encontrar o rapaz com o qual vinha conversando durante semanas, pela rede social. A chuva intensa dos últimos dias, que alagou inúmeras casas e causara danos em diversos estabelecimentos comerciais, finalmente parecia ter dado uma trégua, apesar da ausência do sol. Desde que a moça chegou à capital, ainda não tinha feito muitos amigos, mas sentia que havia encontrado um amor, uma razão para se sentir viva, antes mesmo de ter com quem confidenciar isso.     Quem diria que uma solicitação de amizade faria o coração bater mais forte. No trabalho, escritório da sede administrativa da madeireira Atlanta, o telefone tocou. Era Micael.
     - Alô!
     - Bom dia minha musa dos olhos brilhantes.
     - Bom dia Mica.
     - Estou te atrapalhando? Você está falando tão baixo...
     - Estou escondida no depósito aqui do escritório – Jaque deu uma risadinha tímida – mas pode falar sim. Estava com saudades de ouvir sua voz.
     - E olha que nos falamos ontem à noite, luz da minha vida.
      - Meu amor!
     - Vamos nos encontrar finalmente esta noite?
     - Claro, não posso mais esperar para te ver pessoalmente.
     - Eu sugiro aquele barzinho que tem no final da rua Hermes, no seu bairro mesmo. Acho o lugar bacana.
     - Ele é um pouco pacato, não tem música ao vivo, nem muitos frequentadores.
     - Mas assim é melhor, podemos conversar com mais tranquilidade. Não concorda?
     - Concordo meu amor. Esta noite às oito horas?
     - Combinado, te encontro lá.
     Jaqueline saiu de fininho de onde estava escondida, para que ninguém descobrisse que havia quebrado a regra de não utilizar o celular durante o expediente. Nunca os minutos passaram tão devagar quanto naquele dia, apesar da demanda por madeira estar alta. Quando finalmente pode ir para casa, apressou-se em tomar banho, colocar sua melhor roupa, maquiar-se e sair para seu tão esperado encontro.
     O coração pulava forte no peito, as pernas tremiam e as mãos suavam. Somente duas mesas estavam ocupadas: uma na parte de dentro do bar, por um casal de meia idade que pareciam tentar engolir seu cansado relacionamento com cervejas, e outra, na calçada, por um rapaz de costas para a rua, vestindo calça jeans preta e camiseta social verde. Seria ele? Será? Era sim.
     Quando Jaqueline estava a poucos passos de Mica, ele virou-se com um sorriso largo:
     - Seus olhos realmente são muito brilhantes.
     - Obrigada.
     - Por favor, sente-se.
    Jaque se sentou bem em frente à Mica, e ambos ficaram se olhando sem dizer nenhuma palavra. A rua estava silenciosa, a noite escura, como se prometesse mais chuva pela frente. Mica a olhava nos olhos, como se quisesse ler sua alma. Após o garçom deixar na mesa a garrafa de cerveja e dois copos, o rapaz quebrou o silêncio:
     - Podemos pedir algo para comer?
     - Sinto muito, estamos sem nada para oferecer além de bebidas.
     O garçom de aspecto cansado voltou para dentro do bar, continuar a limpeza do piso, que ainda estava cheio de lama da tempestade anterior. O casal que ocupava a outra mesa estava indo embora. Só sobrava no lugar Jaqueline e Micael.
     - Não há nada mais sincero que o olhar. Ele não mente, não trai. Foi a primeira coisa que reparei em suas fotografias: seus lindos olhos castanhos.
     - Obrigada.
     - Você está com fome?
     - Um pouco... – Na verdade, por conta da ansiedade, Jaqueline não comera nada o dia inteiro, e estava se sentindo muito fraca.
     - Seu olhar é minha fonte de energia.
     - Não seja exagerado, mas obrigada pelos elogios.
     - É verdade, eu me alimentaria dos seus olhos. Seu olhar cheio de luz, de vida.
     Jaqueline sentia seu corpo amolecer, uma forte sensação de sonolência que não lembrava ter tido após ter tomado cerveja na vida. A cabeça pesava cada vez mais e uma inércia a paralisava.
     Micael levantou da cadeira e aproximou-se dela, que já não conseguia falar ou fazer nenhum movimento. Lentamente ele tirou do bolso um canivete, e cirurgicamente arrancou os olhos da moça, colocando-os num pequeno saco plástico, junto a outros de diferentes datas.
     - Vou guardar com muito carinho essa luz que me alimenta, não se preocupe.
     Sem ser notado pelo garçom, Micael foi desaparecendo, serpenteando pela rua, surgindo como um vulto de luz por debaixo dos postes solitários, sumindo na escuridão.

segunda-feira, 8 de março de 2021

As próximas gerações - dia da mulher

 Este conto diz mais no vácuo entre passado e presente do que na história redigida. Não precisamos repetir o que sofremos, pois é a única forma de se libertar às vezes.



    Quando Viviane nasceu, a família não comemorou muito. Sim, fora uma emoção o mistério da vida acontecendo diante dos olhos do marido, mãe, avó e a parteira. Mas os sorrisos encolheram-se um pouco ao ouvirem a frase:

    - É uma menina.
    Os parentes vinham visitar o casal, com mimos, expectativas e pitacos:
    - Não acredito! Não conseguiu fazer um varão! – exclamava o compadre.
    - E quem vai levar o sobrenome da família adiante? – questionava o avô.
    - Quero ver quando casar, a despesa que vocês vão ter... – comentava a comadre.
    - Vai ter que amarrar os gaviões – ria a sogra.
    E enquanto a menina crescia, a família aumentava. Os varões chegavam: José, Fabrício, Ernesto e Joaquim. Depois deste último, o útero da matriarca teve que ser retirado. Tornara-se, para seus pares, um pouco menos mulher e, para aliviar sua tristeza, cuspia palavras amargas na filha.
    E assim Viviane foi crescendo, e a cada dia aprendendo mais sobre lavar, secar, guardar e cuidar dos irmãos. Estudar? Para quê? Um casamento com um pretendente arranjado era mais que o suficiente para exercer seu papel na sociedade.
    Um dia o casamento lhe bateu a porta, como uma tempestade de verão repentina. Viviane se viu diante da reprise de uma vida que ainda não a pertencia, mas que parecia seu destino. Sabia que sua voz não era audível aos ouvidos da família, que seus sonhos eram guardados com as roupas e que varria para debaixo do tapete suas discordâncias e amarguras. Bom seria ser José, Fabrício, Ernesto e Joaquim, orgulho do pai, participantes dos negócios, que liam e faziam contas e comungavam de risadas folgadas após as refeições.
    Bem que ela quis fugir, enquanto o vestido branco lhe era apresentado, o salão da comunidade decorado e os detalhes organizados. Viviane ficava se imaginando lendo os poucos livros empoeirados na estante, trabalhando como os irmãos, apaixonando-se. Perdida entre pensamentos, quando se deu por conta estava no altar, diante de um homem que mal conhecia para concretizar um destino que não queria. Na hora que o padre perguntou se ela aceitava casar-se com Antônio Ridegatto, ela respondeu...
    - Mãe, que triste a vida da vovó. Ainda que os tempos mudaram. E eles foram felizes?
    - Ela foi uma ótima mãe. Ele foi um bom pai. Mas pouco se falavam e, como você se lembra, o vovô terminou a vida dormindo no quartinho de hóspedes.
    - Eu não me lembro deles conversando muito quando íamos lá nos domingos...
    - Pois é, então se você não quiser que eu escolha seu marido, trate de escolher bem seu namorado.
    - Ai mãe, ninguém mais faz isso.
    E numa risada uníssona, envolvidas num abraço, ambas agradeceram aos esforços de todas as avós, que a passos curtos e perseverantes, construíram os caminhos para as mulheres das próximas gerações.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

18+ A terapia narrada

  A Radio Putzgrila (recomendo muito!) Fez a narração do conto A TERAPIA. Acessem o link abaixo e confiram:



18+ A TERAPIA

 



    - Essa terapia me fará um psicólogo conhecido no mundo todo – suspirava Allan, encantado ao ver as pacientes, sentadas em círculo, na sua ampla sala de estar. Uma mistura de adrenalina e odores tornava, para ele, o espaço denso e acolhedor.

          - Acho que eu sou a única pessoa neste mundo que ainda gosta de músicas antigas. Doutor, o senhor pode colocar a canção “Dream a Little Dream of Me”? Adoro a voz de Louis Armstrong.- Era a canção que ela estava ouvindo na padaria, onde tomava seu café da manhã, antes de aceitar a proposta do psicólogo.

          Allan ajeitou seu paletó (“preciso comprar um que se ajuste melhor ao meu corpo, este está largo”) e colocou na vitrola o velho disco de vinil para rodar. Depois, voltou a aquecer o bule com café no fogão improvisado (“daqui há alguns anos, estarei num lugar bem mais confortável que aqui”).

          - Eu não gosto dessas músicas velhas, eu prefiro pop music, como Madonna e Lady Gaga – retrucou Laura, enquanto segurava uma lixa, exibindo suas unhas vermelhas com o esmalte corroído pela rotina de lavar pratos na lanchonete. Em outros dias, no vespertino, estaria nas ruas fazendo programas para completar o orçamento, mas na semana anterior foi convencida que a terapia era de extrema necessidade para ela.  

– Me sinto na casa daqueles clientes velhos e carentes, fedendo a mofo e tocando canções esquecidas – continuou a jovem.

          - Eu desprezo totalmente sua profissão. Você é bonita e parece ser inteligente, deveria fazer algo mais decente do que, Deus me perdoe, vender seu corpo. – Lívia tinha pavor só de imaginar que a moça a sua frente praticava tamanhas obscenidades, e rezava em pensamento todas as vezes em que Laura relatava detalhes mais íntimos. De tanto apertar o terço em suas mãos, seus dedos já estavam marcados pelas bolinhas de plástico. Talvez Allan estivesse certo quando, na saída da igreja, a convenceu a participar do tratamento.

          - Continuo achando que... A presença de Nataly... Não é adequada. Quantos anos... Você tem... Querida? – perguntou Ana, a jovem estudante de fotografia que estava sentada entre a menina e Laura.

          - Tenho doze.

          - O que você... Está desenhando?

          - Meu urso – exibindo seu caderno aberto para Ana, mostrou um esboço do que seria realmente o brinquedo referido.

          - Vai ficar muito... Lindo quando... Terminar.

          - Obrigada, mas acho que vai demorar. Meus olhos doem.

          As duas estudantes estavam na parada de ônibus quando viram que a vida poderia ser mais leve, e ganhar um novo sentido através da terapia do recém-formado.

          - Boa tarde meninas, vamos começar nossa sessão?

          Allan sentou-se na roda. As pacientes permaneceram imóveis.

          - Vejo que hoje vocês estão bem mais entrosadas que ontem. Fico feliz com isso. Neste segundo encontro quero ouvir mais sobre as dores de cada uma. Antes disso, alguém aceita café?

          As diversas vozes femininas pelo cômodo ecoaram um pouco mais altas que o som da música que tocava, numa negativa única. Mesmo assim, sabendo que Nataly adorava a bebida, foi até a jovem e a vez beber uns goles.

          - Cuidado para não se sujar – advertiu o psicólogo, passando o dedo no canto inferior dos lábios da estudante.

          - Estava muito bom. Agradeço.

          - Sabia que iria gostar. Estão gostando desta canção que está rodando?

          - Sim, psicólogo. Eu adoro a atmosfera que ela cria na sala...

          - Certo, Amélia. A propósito, você, assim como as demais, está muito bonita hoje.

          - Obrigada.

          - Mas eu teria escolhido um batom mais chamativo, uma cor mais quente quem sabe. Acho que este tom escuro não ficou tão bem. Permita-me.

          O jovem colocou a xícara de café na mesinha ao lado, e dirigindo-se até Laura pegou um batom vermelho de sua bolsa, passando com cuidado nos lábios de Amélia, sentindo a textura da pele e vendo a transformação ocorrer.

          - Acho que fiquei bem mais bonita agora. Obrigada, doutor.

          - De nada. Bom, Lívia, vejo que você está quieta hoje.

          - Estou em sintonia com meu Deus.

          - Então quem sabe você pode ser a primeira. Onde dói?

          - Viver dói. Nossos sonhos são espedaçados com a facilidade que arrancamos um fio de cabelo. Eu sinto dores nas Cinco Santas Chagas de Cristo. Sinto os meus pulsos e pés como se estivessem sendo perfurados, e meu peito rasgado. Na verdade não consigo mexer meus pés.

          - Lívia, quem sabe o seu fanatismo religioso está fazendo com que sinta isso.

          - Ela é louquinha. Falta é sexo, dos bons – interrompeu Laura, que pousava as mãos em seus mamilos sob a blusa erguida, justinha, que os cobriam. – A propósito, só eu que estou sentindo uma sensação gelada no abdome?

          - Minha Nossa Senhora – a cristã fazia o sinal da cruz e apertava mais e mais o terço.

          - Garotas, por favor. Vamos prosseguir. Nataly, onde é sua dor?

          - Eu sinto dificuldades para respirar... Sinto meus pulmões rasgando... Cada vez que puxo o ar. – E enquanto se esforçava para entoar as palavras, observava pela grande janela, como um pássaro planejando novos vôos.

          - Ontem você disse que ficou muito assustada quando viu as imagens que retratavam a punição nórdica da Águia de Sangue. Será que teria algo a ver?

          - Não me faça... Lembrar delas. Quanta dor essa gente... Deve ter sentido ao ter suas costelas... Separadas da coluna vertebral... E seus pulmões estendidos... Para fora do corpo? Quanta dor! – A jovem estudante permanecia estática. Allan aproximou-se dela e apertou seus ombros pelas costas. – Você vai ficar bem. Vai alcançar as estrelas com sua arte.

          - Obrigada... Doutor...

          - E você, Amélia, o que dói? – O psicólogo percebeu que as marcas roxas pelo seu próprio corpo incomodavam, mas a prioridade era as pacientes. Ele ficaria para depois.

          - Eu não sei, parece que dancei por horas a fio. Minhas pernas latejam e meu pescoço parece que vai deixar minha cabeça cair de tanto que ela pesa. Mas minha maior dor é na altura das pregas vocais.

          - Nos últimos dias você discutiu com alguém? Falou o que não devia?

          - Não lembro, doutor. Me sinto tão deslocada neste mundo. Parece que não me encaixo em grupo nenhum, que nasci na década errada. Pouco falo.

          - Estranho.. Laura, sua vez.

          - Eu sinto dor na minha barriga, como se eu tivesse passado por uma cesariana sem anestesia.

          - Você já teve filhos?

          - Não. Estou grávida. Eu ainda não decidi se quero ou não continuar com a gravidez. Como vou sustentar? Eu nunca deveria ter aceitado aquele programa sem camisinha. Mas eu não tive escolha: ou isso ou ser jogada na rua.

          - Eu repito, você deveria fazer outra coisa da vida.

          - Lívia, você já teve sua vez de falar. Continue rezando. Ou melhor, me dá este terço.

          Allan imaginou Laura levantando da cadeira e, tomando o objeto em mão, enfiando-o em sua boca, deixando apenas Cristo pendurado pelo lado de fora, balançando-o com a língua. Mas antes que isso pudesse acontecer, foi até Lívia e certificou-se que o terço estava firme entre os dedos dela.

          - Então Ana, quer falar o que dói?

          A menina encolhida sob a cadeira, abraçando seu caderno contra o peito, nada dizia.

          - Pode falar, menininha. – O jovem ergueu-se e ajeitou o laço que enfeitava os cabelos molhados da pequena.

          - Eu sinto dor nos olhos e entre as pernas.

          - Acho que você está desenhando demais.

          - Pode ser.

          - Minha querida, é normal sentir dor quando a menstruação chega. Você está menstruada? – perguntou Amélia.

          - Estou sangrando.

          - Então deve ser isso.

          A tarde terminara e a noite reinava sobre a cidade. Milhões de estrelas se exibiam pela grande janela da cobertura onde estavam. A lua cheia iluminava quase tanto quanto a luz do apartamento. Como era bom ser o único habitante daquele prédio, e estar tão perto de Deus e longe dos homens. Ainda faltava muito para chamar a casa de lar, mas em boa companhia, qualquer espaço decadente se torna aconchegante. Allan sabia que elas seriam curadas na terapia que tanto defendeu durante seus estudos.

          E ele começara a sentir fome. Quase onze horas da noite, deixou a roda e foi buscar um pedaço de pizza fria, resto do dia anterior.

- Vocês querem?

A agulha se recolhera no toca discos, o silêncio reinava. Amélia dormia com sua cabeça pendendo entre os joelhos. Nataly observava o encanto do céu estrelado, com os braços suspensos e abertos. Lívia mantinha-se numa oração secreta, Laura exibia seu ventre, que, após saber da gravidez pela boca dela, chamava mais atenção para o jovem psicólogo e Ana dormira abraçada ao caderno, com o sangue escorrendo pelas coxas, joelhos, tornozelos e pés, manchando o tapete da sala.

- Coitadinha de vocês – ele pensou.

(Barulhos de passos distantes pela escadaria do prédio.)

- Meu coração sofre com as dores de cada uma.

(Os passos vão se aproximando cada vez mais.)

- Descansem, amanhã temos mais uma sessão de terapia.

Com um forte chute, a improvisada porta de madeira foi ao chão. Policiais fortemente armados invadiram o apartamento e viram, sentadas em cadeiras dispostas em círculo, quatro mulheres e uma menina mortas, uma com o pescoço cortado após ser obrigada (segundo laudo posterior) a dançar por horas sem parar a mesma canção, seminua. Outra foi executada conforme os ferimentos de Cristo, tendo os pés pregados em um pedaço de madeira. A dançarina desaparecida da boate Sedução teve sua barriga aberta e morreu de hemorragia. Seu feto estava jogado ao seu lado. A estudante de fotografia foi transformada numa Águia de Sangue, e estava sentada bem próxima a estrutura da janela, que já não tinha vidros. A criança teve seus olhos arrancados com facas e foi cruelmente profanada após a morte. A noite estava estrelada, a lua cheia iluminava santos e pecadores.

Ao ser conduzido para fora do apartamento, Allan tentou despedir-se das pacientes, mas conforme mais policiais e investigadores entravam, não conseguia vê-las, e isso partia seu coração. Elas precisavam dele, não podia abandoná-las assim.

- Eu voltarei, garotas. Eu ainda vou curar as dores de cada uma de vocês.