Ganhador do 2º Lugar na modalidade CONTOS no Concurso Regional de Contos, Crônicas e Poesias Oscar Bertholdo, originalmente o texto foi escrito em colunas, contando paralelamente duas versões para uma mesma situação: olhares cruzados ao atravessarem a rua. O traço representa a mudança de eu-lírico.
Eu lembro bem daqueles
olhos, intensos, negros. O calor, a textura, o sabor da pele. Os longos cabelos
soltos aconchegando-se entre nossos corpos. /
Eu estava por aí, trilhando os passos da rotina e
degustando o sabor amargo da monotonia. Simples assim: acordar, sair sem
observar o sol, vestir-se com pressa, ir até a parada de ônibus. Aguardar o
transporte, chegar ao trabalho, sair do trabalho. Mais transporte público, mais
espera. Cansaço, banho, jantar e sofá. /
Mas por um momento, a grande avenida virou beira da
praia. Os prédios se tornaram árvores e as pessoas pássaros. Os carros
transformaram-se em brisa da manhã e todo o meu corpo foi tomado pela visão
mais intensa da minha vida. De repente o mundo parou e eu só vi ela. Seu rosto,
seus olhos que me tragaram para um universo paralelo. O semblante de um anjo
emergindo do fogo, de um sinal concreto de paz, de força, luz e vida no meio da
tormenta. /
O tempo passou e estávamos nos amando. Sua respiração tão
próxima ao meu pescoço, suas unhas agarrando-se às minhas costas como uma
pantera, seus lábios umedecendo meus pelos mais ínfimos. Minha nuca, sua nuca.
Minha mão mergulhando nos mistérios debaixo de sua saia. Mergulhados um no
outro, misturando corpos, almas e ilusões. /
Como ela era linda em sua plenitude. No seu jeito de
falar, ou no silêncio de seu beijo. Na forma como reclamava de tudo, mas não se
queixava de nada. A forma que mordia meu beijo, e acariciava minhas ansiedades. /
Mas por um momento, a praia virou avenida, as árvores
prédios e os pássaros pessoas. A brisa da manhã tornou-se fumaça, rodas e
motores. De repente o mundo girou, rodou e esmagou minha paz. Aquele semblante,
como numa visão sedenta, tornou-se um anjo desaparecendo no fogo. Ela passou
por mim, enquanto cruzávamos a avenida. Lado a lado nos
Eu estava atrasado, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato posterior, ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou sempre atrasado, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais. / Eu estava atrasada, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato posterior, ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou sempre atrasada, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais.
Aqui no meu quarto,
descansando do dia, assisto a um programa de televisão. Olho pela janela e fico
imaginando se ela chegasse agora. Se ela simplesmente desembarcasse, nesse
momento que garoa, na frente do meu prédio. Se ela soubesse meu andar, meu
número do apartamento. A campainha tocasse. Ela subiria molhada, eu a
envolveria em meu casaco e a levaria até minha sala. Aquela pele arrepiada do
frescor da água, acalentando-se com uma xícara de chá. /
Conversaríamos sobre o
dia, eu beberia de cada palavra que saísse do seu coração. Ela estaria comigo
para jantar. Faria minha refeição olhando em seus olhos, sorrindo pelas
besteiras que eu falasse. /
E
nos casaríamos. Ela deixaria suas roupas jogadas na beira da cama cada vez que
fosse trabalhar. Eu esqueceria o litro de leite vazio na mesa, e sempre
discutiríamos sobre isso. Teríamos que dividir a televisão, e entrar em acordo
nos dias de jogo. Ela receberia uma blusa de renda no nosso primeiro aniversário,
a qual ela usaria no nosso jantar com os amigos. Ela teria medo do escuro, e eu
de tempestades. E nos amaríamos, como dois adolescentes, entre discussões e
cenas de amantes apaixonados. /
E isso tudo o mudou. No dia seguinte
pediu as contas do emprego que não gostava, marcou uma viagem e, como quem
voltasse de um coma, Inscreveu-se no vestibular e, posteriormente, ingressou na
faculdade de administração. E agradeceu, como quem recebe um presente
inesperado, mas sempre quisto, que a paixão faz o mundo girar para o lado
oposto, acorda os sentidos e modifica a realidade. /
Nenhum comentário:
Postar um comentário