sábado, 24 de abril de 2021

Conto terror: Você ainda não sabe

 Este conto foi narrado por Sérgio Pires, para ser transmitido no programa Creepy Metal Show, na Rádio Putzgrila: agradeço de coração pelo apoio!


O link para ouvir a narração é



        Todas as madrugadas, na mesma hora, Rita acordava com sede. Era incrível, 3h30 em ponto o sonho terminava, um cachorro começava a latir, um barulho grande era ouvido pela casa e lá estava a mulher, desperta.
        E a sede era tanta que não tinha como procrastinar. Era levantar, descer o lance de escadas, passar pela sala, chegar na cozinha e beber um copo de água. Depois a noite prosseguia, os sons cessavam, os cachorros dormiam e os sonhos voltavam. Durante o café da manhã, eram sempre as mesmas confissões:
        - Amor, mais uma vez acordei às 3h30 com sede – ela desabafava com o marido.
        - De novo!
        - Sim.
        - Que saco... Amor, eu vou trabalhar hoje até mais tarde. Temos que terminar a instalação da rede elétrica do novo supermercado que vai abrir segunda-feira. Mas qualquer coisa me ligue.
        - Tá bom, vou ficar vendo séries. Te espero acordada.
        - Acho que vai levar a madrugada toda. Temos muito o que fazer ainda. Estamos atrasados e o contrato precisa ser cumprido.
        - Seu chefe precisa contratar mais funcionários.
        - Mão fechada como ele é, nunca vai!
        - Te amo. Se cuida.
        - Pode deixar. Também te amo.
        Rita gastou sua última sexta-feira das férias do trabalho organizando a casa, tirando o pó dos móveis e lavando o chão. Não era o programa mais divertido, mas de qualquer forma os dias anteriores foram bem aproveitados com passeios pela cidade e visitas a amigas e parentes.
        A noite chegou. Depois de um banho relaxante, e de vestir sua camisola, Rita deitou-se na cama e colocou uma série para assistir. Ela gostava de ver romances adolescentes, por mais que sua vida adulta já tivesse começado há alguns anos. As horas passaram e o sono chegou de mansinho. A televisão desligou sozinha depois de um tempo, e ela adormecera por cima das cobertas.
       Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Poucos segundos depois, os cachorros latiram e batidas começam a ser ouvidas na porta de entrada.
        - Não acredito que o Fábio fez de propósito chegar neste horário. Ele vai ver só!
Rita desceu as escadas rapidamente e abriu a porta. Não podia ser outra pessoa, pois ela teria que ter aberto o portão de entrada, ou pulado a alta cerca eletrificada que protegia a casa. Ela não viu ninguém.
        - Amor, onde você está?
        ...
        - Amor, que brincadeira sem graça! Cadê você.
        Um barulho forte veio da cozinha, os cães latiam com raiva. Mas quase todos os dias esses sons surgiam na madrugada, nem valia o esforço de se preocupar. Agora Fábio enchendo o saco, isso sim não poderia ser ignorado.
        - Quer saber, cansei, vou dormir. Você tem chave, entre quando cansar dessa palhaçada.
        A mulher trancou a porta, voltou para o quarto e deitou-se na cama. O celular começou a tocar. Era o marido:
        - Alô, Rita?
        - Amor, para de brincadeira, entre logo!
        - Linda, como assim? Eu ainda estou no trabalho. Só queria saber se estava acordada neste horário. Eu nem ia deixar chamar muito, mas como atendeu, tenho certeza que, para variar, acordou na hora da água – falou soltando uma tímida risada.
        - Por hoje chega né. Me deixa dormir. Boa noite.
        - Boa noite.
        Um forte barulho de passos pesados se aproximavam pela escadaria, subindo até o quarto onde ela estava. Tudo ficou escuro...
        ...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede.
        Sem fazer barulho, desceu as escadas e foi até a cozinha, ouvindo os cachorros uivando no terreno da vizinha. A mulher abriu o balcão aéreo, pegou um copo, ficou de frente à torneira, encheu-o de água e bebeu. Ao se virar, viu uma moça com o rosto esfumaçado que a imitava. Ela estava vestida com uma camisola amarela, com o tórax e abdome repletos de perfurações, jorrando sangue pelos ferimentos o qual escorria pelas pernas e empoçava no chão.
        Rita queria gritar, mas ficou completamente paralisada. Ela tentou piscar, tentando descobrir se era um truque da mente, mas a figura assustadora permanecia estática diante dela, repetindo com uma voz baixa, lamentosa e pesada:
        - Você ainda não sabe...
        ...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede. E os dias, semanas e meses seguiam sempre iguais, resumidos a madrugadas.
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela descia as escadas, pegava o copo, enchia de água, bebia...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. A imagem de Fábio estava cada dia mais apagada, como se o tempo o diluísse entre os móveis do quarto.   Descer as escadas doía, a água não matava mais a sede...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou, e ao passar pelo espelho se viu com a camisola amarela. Descendo as escadas, sentido muita dor no corpo. Tocava-se. Tinha medo de ligar a luz. Sua roupa estava molhada. Na cozinha, o copo, a água. Mas tudo estava bagunçado, fora de lugar, cheirando a podridão...
        - Você ainda não sabe...
        Às 3h30 o sonho no qual caminhava... E lá estava Rita, desperta. Desceu as escadas, chegou na cozinha, ligou a luz e caída no chão viu-se sem vida, sangrando no piso enquanto uma sombra escura saltava pela janela. Uma sombra que cheirava a ódio e maldade. O corpo doía mais e mais, e as feições da presença oculta se tornaram nítidas. Rita estava diante de si mesma. O tempo todo. A aparição abriu um sorriso misterioso no rosto e esticou os braços para frente, chamando a mulher com as mãos:
        - Agora, finalmente, você sabe...

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