terça-feira, 20 de julho de 2021

Conto (terror): As mãos de Berenice

 Olá povo da escuridão! Hoje quero postar o vídeo, com a narração do grande Sérgio Pires (apresentador do programa Creepy Metal Show - rádio Putzgrila). O conto é "As mãos de Berenice".

        Ter uma pessoa para fazer os serviços domésticos nunca esteve nos planos de Flávia e de seu marido Vítor, hipótese esta descartada com inúmeros argumentos das áreas financeiras, trabalhistas, afetivas e sociais. Da mesma forma, a mudança para uma casa muito maior que aquela onde o casal morava anteriormente, e a descoberta do caso extraconjugal do marido com uma colega de trabalho dele também não tinham sido imaginadas. Para compensar o erro cometido, Vítor começou a tratar a esposa com todos os privilégios e regalias que esta poderia ter, permitindo-a abandonar o emprego e desfrutar de muito mais dinheiro do que já teve em toda a vida. 

        Neste contexto, a contratação de Berenice, uma senhora de meia-idade, franzina, mãos marcadas pelo ofício de limpar desempenhado desde menina, foi concretizada. A entrevista foi feita pelo casal, na sala de estar: 

        - Precisamos de uma pessoa confiável, que permaneça na nossa residência pernoitando, de segunda a sexta-feira, tendo o final de semana inteiro livre. 

        - Eu posso morar com vocês caso necessário. Atualmente pago aluguel. Vivo sozinha... Não tenho parentes no Estado. Tenho disponibilidade total. 

        O casal, através de uma troca de olhares, demonstrou achar interessante a ideia de ter uma doméstica vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana dentro da casa, disponível para atender a todas as demandas e caprichos. Vítor continuou a entrevista: 

        - Muito bem, temos no porão, passando a lavanderia, um quarto com banheiro e, ao lado, uma cozinha compacta. Pode morar lá, não cobraremos aluguel do espaço, nem descontaremos do salário. Claro, em troca você nos atende sempre que for necessário, e se quiser passar os finais de semana em outro lugar, nos avise uns dias antes. 

        - Sim, eu topo. 

        - Você vai precisar comprar os próprios alimentos, quando quiser fazer uma refeição só para si. 

        - Sim. 

        - Seu pagamento vai ser de um salário mínimo e meio, já com os descontos. 

        - Muito obrigada. Nunca recebi tanto dinheiro na vida. 

        O salário a ser pago para a empregada ainda não tinha sido conversado entre Flávia e Vítor. Ela achou a oferta generosa demais, e começou a se questionar se o marido já não a conhecia, se talvez ela fosse mãe de alguma amante, ou até amante, hipótese última que logo foi descartada: geralmente suas amantes eram jovens adultas, altas e loiras. Vítor sabia que, mesmo ganhando muito como CEO, juntando às despesas da esposa, o pagamento pesaria no final do mês, mas seria de grande valia para jogar na cara de Flávia quando esta relembrasse a traição: “eu até pago uma empregada para você não fazer mais os serviços domésticos, sou um bom homem”. 

        - Por favor, então assine este termo. Aqui consta o que combinamos, e nas observações acrescentei que você morará conosco, ocupando umas peças no porão. 

        Com bastante dificuldade em traçar sua assinatura no papel, Berenice escreveu seu nome com letras maiúsculas de imprensa, devolvendo a folha para Vítor. 

        - Berenice, você poderia começar amanhã? – perguntou Flávia. 

        - Sim, posso. Estarei aqui às oito horas da manhã, com minha mudança. 

        - Você precisa que alguém busque suas coisas? 

        - Não precisa, o pouco que tenho cabe no porta-malas de um taxi. Obrigada. 

        O casal acompanhou a senhora até a porta da casa e ficaram vendo-a seguir, a pé, até a parada de ônibus. Ao fecharem a porta, os rostos até antes simpáticos e receptivos se fecharam. Flávia logo cuspiu seus pensamentos na cara do marido: 

        - Na mínima é mãe de alguma amante sua. Pagar tudo isso para uma pessoa que vai morar nesta casa, comer nossa comida, gastar nossa luz e água? Só pode ser favor para algum rabo de saia! 

        - Não, juro que não! Você sabe que nunca mais vou cometer nenhum deslize. Nunca a vi na vida. Ela respondeu ao anúncio da internet. Só. 

        - Não sei se acredito em você... 

        - Acredite sim! Você é a mulher da minha vida. 

        O silêncio tomou conta do ambiente. Berenice, no dia seguinte, já se tornara moradora da casa de Flávia e Vítor, e logo se pôs a limpar, com atenção aos detalhes, cada canto da grande residência. 

        Os dias foram passando. Flávia acompanhava de perto tudo que a empregada fazia, desde o amanhecer, preparando o café da manhã para o casal, a organização de rotina, refeições, até quando esta descia ao porão para descansar, à noite. Ambas, sozinhas durante a semana, trocavam poucas palavras, com as conversas resumidas ao cardápio do dia e tarefas a serem realizadas. Cada vez que Flávia observava a senhora, imaginava ela sendo a mãe ou tia de alguma amante de Vítor, e como uma coisa leva a outra, assistia à reprise do seu marido deitado sobre o corpo da última amante, no sofá do escritório onde ele trabalhava. Se Flávia soubesse o que presenciaria, nunca teria nem cogitado fazer uma visita surpresa ao homem na hora do almoço. Mas, se nunca tivesse feito isso, não descobrira a traição. Sentada no sofá, olhando para um ponto fixo na lareira, Flávia foi interrompida pelo toque suave da mão magra de Berenice em seu braço. 

        - Com licença, a senhora está bem? 

        - Estou... Estou. 

        A empregada baixou a cabeça e voltou a tirar o pó dos móveis. Flávia, se sentindo mentalmente cansada, chamou: 

        - Berenice, sente naquele sofá ao lado. Quero conversar com você. 

        Berenice prontamente atendeu ao pedido, ainda segurando o espanador com suas mãos tísicas e enrugadas. 

        - Berenice, você já foi traída? 

        - Senhora, sim. Meu único companheiro me enganava, saia com outras mulheres, e fez isso até o fim da vida dele, quando um dos maridos traídos o matou, no bar perto de casa – respondeu a senhora, com os olhos mareados. 

        Flávia voltou a ficar com o olhar fixo, distante, mas desta vez parado nas mãos da empregada, que apertava e girava lentamente o cabo do espanador. Sentindo que o assunto trouxe à casa um mal-estar, Berenice pediu licença e voltou a espanar os móveis. A esposa lembrou-se dos dedos do marido, submersos na blusa da amante, enquanto trocava carícias e intimidades sobre o sofá da empresa. E mesclava suas memórias com as mãos que lhe causavam repulsa: as de Berenice. Para Flávia, as da senhora eram típicas de quem nunca se valorizou na vida, devotada a limpar a sujeira dos outros. E que, talvez, tivessem segurado no colo uma loira jovem e linda que, naquele momento, estaria aos beijos com Vítor. 

        Duas semanas se passaram. Flávia se fechara mais e mais dentro de si, misturando fatos e suposições. Numa noite, enquanto o casal esperava a empregada servir um ensopado, Vítor recebeu uma ligação que o fez mudar de cor, silenciando rapidamente o telefone. 

        - Quem estava te ligando? 

        - Não reconheci o número. Certo que era telemarketing. 

        - Mas neste horário? 

        - Amor, já falei que mudei. 

        Berenice aproximou-se da mesa e foi descendo a panela com a sopa quente entre o casal, mas quando esta estava quase tocando a superfície, as mãos da empregada perderam a força, e com o impacto do objeto, respingos voaram sobre os três: 

           - Que é isso Berenice! Você me queimou! – gritou Flávia, levantando-se com raiva. 

        - Eu sinto muito. – desculpou-se Berenice, secando suas mãos, também atingidas pelo caldo fervendo, no avental. 

        - Flávia, tenho certeza que ela não fez por querer. Vou buscar uma pomada para tratar nossas queimaduras – anunciou Vítor. 

        - Quanta gentileza, Vítor! Primeiro uma ligação misteriosa, depois ela “perdeu a força”. Que interessante... 

        - Flávia, quanta besteira! 

        - Besteira? Você se grudando na loirinha do trabalho é que foi besteira! Fala a verdade, tá saindo com que colega agora, grande CEO? 

        O marido deu as costas para a mulher que esbravejava, retornando com a pomada e dando um pouquinho do medicamento primeiro para Berenice, depois para a esposa. 

        - Vamos voltar a jantar. Berenice, vá descansar. 

        Flávia nem quis continuar a refeição, e subiu ao primeiro andar, batendo todas as portas que cruzara. Berenice desceu para o porão e Vítor jantou sozinho. Antes de dormir, ele foi até o quartinho da empregada, pedir desculpas pela grosseria da esposa: 

        - Sinto muito, Berenice. Ela está ainda chateada comigo. 

        - Tudo bem, entendo. Obrigada pela gentileza de vir falar comigo. 

       - Eu que agradeço pela compreensão. Boa noite. 

        - Boa noite. 

        Flávia, escondida no topo da escadaria, só observava Vítor retornar do porão, na escuridão da casa, e dirigir-se ao quarto. E tudo ia ficando cada vez mais claro: ela era sim, mãe de uma amante que ainda não sabia quem era. Aquelas mãos nojentas e inúteis criaram uma linda menina, que se tornou a mais nova loirinha de seu marido mentiroso. 

        Planos começaram a surgir na cabeça da mulher. A última semana mostrou a Vítor e Berenice uma Flávia magicamente colaborativa, simpática e prestativa. Ela fez questão de ajudar a empregada em diversos momentos, inclusive riram muito fazendo biscoitos para quando o marido chegasse cansado do trabalho. No domingo à noite chovia muito, e após uma refeição alegre, com direito a Berenice ocupar a mesma mesa que os patrões, um tanto embriagado o marido decide ir dormir. 

      - Obrigado pela companhia, espero minha linda mulher no quarto o quanto antes. Berenice, bons sonhos. 

        - Obrigada, senhor Vítor. Para você também. 

       Ao perceber que o esposo desaparecera na escadaria, Flávia abraçou Berenice por trás, falando ao pé do ouvido da senhora: 

        - Obrigada por estar fazendo parte da nossa vida. – Uma das mãos de Flávia largou a senhora por um momento, retornando rapidamente com um pano que foi colocado com força sobre o nariz da empregada. 

        - Bons sonhos. 

          No dia seguinte, o marido estranhou que Flávia havia preparado o café da manhã, e questionou:

         - Cadê Berenice? 

         - Nesta semana eu a deixei viajar para o Mato Grosso, visitar uns parentes. Ah, desculpa por não ter te falado. - Ela merece né! Sempre tão querida. 

          - Merece. Quando Vítor saiu, Flávia desceu até o porão e abriu o cadeado que prendia Berenice a uma coluna no quartinho. 

         - Saia daí sua inútil, e limpe a casa. 

       Berenice, com os olhos inchados de tanto chorar, estava com os pés presos por correntes, e na extremidade de seus antebraços, faixas apertadas ocupavam o lugar que outrora era das mãos. 

         - Sentindo falta das suas mãos? Tadinha! Como vai acariciar os cabelos loiros de sua jovem filha?

          - Dona Flávia, eu não tenho filha. 

         - Não minta. Ela deve estar agora mesmo debaixo do corpo do meu marido, deixando-o ofegante. 

       - Dona Flávia... 

       Pelos cabelos, a esposa arrastou Berenice até a sala de estar, colocando- a de quatro diante de um balde cheio de água e desinfetante, e um pano. 

          - Esfrega este chão! 

         - Dona Flávia, estou cada vez mais fraca. Minhas mãos... – Berenice chorava e gemia de dor. As ataduras não iam mais dando conta de estancar o sangue da mutilação. 

          - Você vai limpar, mesmo que com a boca! – Flávia retirou o pano do balde, e enfiou na boca da empregada, empurrando a cabeça dela contra o chão. 

         - Esfregue! 

       O corpo de Berenice, que sangrou por horas, foi esvaindo-se de vida e, no meio da sala, ela morreu. Sem demonstrar remorso, a esposa arrastou o cadáver até o jardim dos fundos, e jogou-o num velho poço artesiano desativado. Com raiva, limpou todos os vestígios de sangue e aguardou o marido, no final do dia. 

        Durante o jantar, Vítor percebeu que a mulher não parava de mexer na gola da camiseta, puxando-a para frente. 

        - Amor, você está bem? 

       - Sim, só acho que esta camiseta está me apertando. Quer saber, vou trocar por uma com uma gola mais aberta. 

       - A Berenice está fazendo falta. Você sabe quando ela volta? – perguntou Vítor. 

      - Ela não disse quando voltaria. 

       No quarto do casal, marido e mulher dormiam quando o relógio marcou meia-noite. Flávia acordou sentindo gosto de desinfetante na boca, e uma sensação de quem estava tendo o pescoço apertado. 

      - AAAAAH! 

      O grito acordou Vítor, que rapidamente acendeu a luz e sentou na cama: 

      - O que houve, amor? 

      - Não sei, sinto algo apertando meu pescoço. 

     - Você está desde a janta sentindo isso. Deve ser ansiedade ou mera impressão. Vamos voltar a dormir. 

       - Talvez seja psicológico mesmo – concordou Flávia. 

      Uma hora da madrugada, novamente ela acordou em pânico. 

       - Eu sinto algo apertando meu pescoço. 

         - Por favor, Flávia! Eu preciso trabalhar amanhã cedo. 

         Duas horas da madrugada, Flávia vai saindo do mundo dos sonhos com a carícia de dedos finos em seu rosto, que aos poucos vão se tornando arranhões que ardiam. Vítor, novamente acordado por um grito, ligou a luz e viu o rosto da esposa todo marcado por unhas. 

       - Meu Deus, Flávia! O que você se fez? 

       - Eu não fiz nada! Meu rosto arde! 

      - Você está toda arranhada, inclusive está sangrando um pouco. Pare com isso, preciso dormir! 

       A esposa foi até o banheiro do quarto, e ao olhar-se viu exatamente o que Vítor descrevera: marcas horizontais que escorriam de sua testa ao pescoço. Imediatamente ela lembrou-se de que havia deixado as mãos de Berenice no quarto do porão, cômodo que esquecera de limpar. Vítor voltara a dormir rapidamente. 

       Sem fazer barulho, ela desceu até o porão e se deparou com o quarto todo ensanguentado. Sangue agora que estava seco pelo chão, cobertas e paredes. As mãos da empregada não estavam em lugar nenhum. 

       - Eu juro que deixei aqui no chão! – a mulher repetia para si mesma. 

    Flávia procurou e procurou. Três horas da madrugada. Cansada da busca, a esposa acabou adormecendo sobre os lençóis embebecidos no sangue de Berenice, sentindo-se naufragar em seu próprio feito: em sua vitória sobre o marido traidor e a mãe de sua amante. 

       Três e meia da madrugada, Flávia foi acordada por dedos magros e enrugados comprimindo seu pescoço. Quanto mais ela se debatia, mais o ar parecia esvair-se. Tentando se livrar do sufocamento, ela procurava desesperadamente os braços inimigos, mas era inútil. Eram somente as mãos: as mãos de Berenice.

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