Como o Baphominho não tem Blog (por hora), vou emprestar o meu para ele postar o link do QUIZ da historinha que ele postou, escrita pela maravilhosa autora Maria F. Dutra, ilustrações do grande Adriano Siqueira:
Ganhador do 2º Lugar na modalidade CONTOS no Concurso Regional de Contos, Crônicas e Poesias Oscar Bertholdo, originalmente o texto foi escrito em colunas, contando paralelamente duas versões para uma mesma situação: olhares cruzados ao atravessarem a rua. O traço representa a mudança de eu-lírico.
Eu lembro bem daqueles
olhos, intensos, negros. O calor, a textura, o sabor da pele. Os longos cabelos
soltos aconchegando-se entre nossos corpos. / Eu lembro bem daqueles olhos, intensos, claros. O calor, a textura, o sabor da pele. Os cabelos desalinhados escondendo-se entre meus dedos.
Eu estava por aí, trilhando os passos da rotina e
degustando o sabor amargo da monotonia. Simples assim: acordar, sair sem
observar o sol, vestir-se com pressa, ir até a parada de ônibus. Aguardar o
transporte, chegar ao trabalho, sair do trabalho. Mais transporte público, mais
espera. Cansaço, banho, jantar e sofá. / Eu
estava por aí, flutuando envolta emrotina e degustando como café da manhã a solidão de cada dia. Simples assim:
acordar, sair sem observar o sol, vestir-se com pressa, batom, escova, olhada
no espelho, ir até a parada de ônibus. Aguardar o transporte, chegar ao
escritório, sair do escritório. Mais transporte público, mais espera. Cansaço,
banho, jantar e celular.
Mas por um momento, a grande avenida virou beira da
praia. Os prédios se tornaram árvores e as pessoas pássaros. Os carros
transformaram-se em brisa da manhã e todo o meu corpo foi tomado pela visão
mais intensa da minha vida. De repente o mundo parou e eu só vi ela. Seu rosto,
seus olhos que me tragaram para um universo paralelo. O semblante de um anjo
emergindo do fogo, de um sinal concreto de paz, de força, luz e vida no meio da
tormenta. / Mas
por um momento, a grande avenida virou um campo largo. Os prédios se tornaram
árvores e as pessoas nuvens. Os carros transformaram-se em riacho e todo o meu
corpo foi tomado pela visão mais intensa da minha vida. De repente o mundo
parou e eu só vi ele. Seu rosto, seus olhos que me tragaram para um universo
paralelo. O semblante de um tornado emergindo na estrada. De um sinal concreto,
desconexo, de força, luz e vida no meio da tormenta.
O tempo passou e estávamos nos amando. Sua respiração tão
próxima ao meu pescoço, suas unhas agarrando-se às minhas costas como uma
pantera, seus lábios umedecendo meus pelos mais ínfimos. Minha nuca, sua nuca.
Minha mão mergulhando nos mistérios debaixo de sua saia. Mergulhados um no
outro, misturando corpos, almas e ilusões. / O
tempo passou e estávamos nos amando. Diversas cores, em milhares de tons
rubros. Uma mistura de dor e desejo, coragem e medo. Mistura de corpos, almas e
ilusões.
Como ela era linda em sua plenitude. No seu jeito de
falar, ou no silêncio de seu beijo. Na forma como reclamava de tudo, mas não se
queixava de nada. A forma que mordia meu beijo, e acariciava minhas ansiedades. / Como
ele preenchia minha vida, dava sentido e direção pra estrada que eu antes
seguira sozinha. Bebia da minha saliva e mastigava minhas palavras, sonhos e
ansiedades. O jeito que olhava em meus olhos e... Eu nunca saberei descrever
perfeitamente aquele olhar.
Mas por um momento, a praia virou avenida, as árvores
prédios e os pássaros pessoas. A brisa da manhã tornou-se fumaça, rodas e
motores. De repente o mundo girou, rodou e esmagou minha paz. Aquele semblante,
como numa visão sedenta, tornou-se um anjo desaparecendo no fogo. Ela passou
por mim, enquanto cruzávamos a avenida. Lado a lado nos olhamos, num olhar que
durou o tempo de toda a possibilidade de uma existência. / Mas por um momento, o campo largo virou avenida. Nuvens e árvores viraram pessoas e prédios. Riachos viraram rodas, motoristas e poluição, nessa visão mais intensa da minha vida. De repente o mundo girou, rodou e esmagou as imaginações de uma existência. O semblante de um tornado que passou no meu coração. Das coisas que poderiam ser. Ele passou por mim, enquanto cruzávamos a avenida. Lado a lado nos olhamos, num olhar que durou o tempo de toda a possibilidade de uma existência.
Eu estava atrasado, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato
posterior, ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou
sempre atrasado, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais. / Eu
estava atrasada, não podia voltar a trás, nem para tentar um contato posterior,
ou ao menos saber seu nome. Então pensei, pensei e vi o como estou sempre
atrasada, sempre tentando honrar minha rotina, que nem me encanta mais.
Aqui no meu quarto,
descansando do dia, assisto a um programa de televisão. Olho pela janela e fico
imaginando se ela chegasse agora. Se ela simplesmente desembarcasse, nesse
momento que garoa, na frente do meu prédio. Se ela soubesse meu andar, meu
número do apartamento. A campainha tocasse. Ela subiria molhada, eu a
envolveria em meu casaco e a levaria até minha sala. Aquela pele arrepiada do
frescor da água, acalentando-se com uma xícara de chá. / Aqui
no meu quarto, descansando do dia, assisto a uma série. Olho pela janela e fico
imaginando se ele chegasse agora. Se ele simplesmente desembarcasse, nesse
momento que garoa, em frente ao meu prédio. Se ele soubesse meu andar, meu
número do apartamento. A campainha tocasse. Ele subiria com flores, eu o
envolveria em meu abraço e o levaria até minha sala. Minha pele arrepiada, seu olhar
envolvente, momentos em que os olhos falassem mais que a voz. Acalentando-se,
ele, com uma xícara de chá.
Conversaríamos sobre o
dia, eu beberia de cada palavra que saísse do seu coração. Ela estaria comigo
para jantar. Faria minha refeição olhando em seus olhos, sorrindo pelas
besteiras que eu falasse. / Conversaríamos
sobre o dia, eu beberia de cada palavra que saísse do seu coração. Ele estaria
comigo para jantar. Faria minha refeição olhando em seus olhos, sorrindo pelas
besteiras que eu falasse.
E
nos casaríamos. Ela deixaria suas roupas jogadas na beira da cama cada vez que
fosse trabalhar. Eu esqueceria o litro de leite vazio na mesa, e sempre
discutiríamos sobre isso. Teríamos que dividir a televisão, e entrar em acordo
nos dias de jogo. Ela receberia uma blusa de renda no nosso primeiro aniversário,
a qual ela usaria no nosso jantar com os amigos. Ela teria medo do escuro, e eu
de tempestades. E nos amaríamos, como dois adolescentes, entre discussões e
cenas de amantes apaixonados. / E
nos casaríamos. Ele deixaria a toalha molhada jogada na beira da cama cada vez
saíssedo banho. Eu esqueceria uma
janela aberta, e sempre discutiríamos sobre isso. Teríamos que dividir a
televisão, e entrar em acordo quanto que série ver. Ele faria uma surpresa no
nosso primeiro aniversário, a qual eu nunca esqueceria. Ele teria medo de
crises econômicas, e eu do desconhecido. E nos amaríamos, como dois
adolescentes, entre discussões e cenas de amantes apaixonados.
E isso tudo o mudou. No dia seguinte
pediu as contas do emprego que não gostava, marcou uma viagem e, como quem
voltasse de um coma, Inscreveu-se no vestibular e, posteriormente, ingressou na
faculdade de administração. E agradeceu, como quem recebe um presente
inesperado, mas sempre quisto, que a paixão faz o mundo girar para o lado
oposto, acorda os sentidos e modifica a realidade. / E
isso tudo a mudou. No dia seguinte pediu as contas do emprego que não gostava,
marcou uma viagem e, como quem voltasse de um coma, largou a faculdade de
administração, desejo ardente de seu pai para fazer um curso de teatro. E
agradeceu, como quem recebe um presente tão esperado, que a paixão faz o mundo
girar para o lado oposto, acorda os sentidos e modifica a realidade.
Olá povo da escuridão! Hoje quero postar o vídeo, com a narração do grande Sérgio Pires (apresentador do programa Creepy Metal Show - rádio Putzgrila). O conto é "As mãos de Berenice".
Ter
uma pessoa para fazer os serviços domésticos nunca esteve nos planos de Flávia
e de seu marido Vítor, hipótese esta descartada com inúmeros argumentos das
áreas financeiras, trabalhistas, afetivas e sociais. Da mesma forma, a mudança
para uma casa muito maior que aquela onde o casal morava anteriormente, e a
descoberta do caso extraconjugal do marido com uma colega de trabalho dele
também não tinham sido imaginadas. Para compensar o erro cometido, Vítor
começou a tratar a esposa com todos os privilégios e regalias que esta poderia
ter, permitindo-a abandonar o emprego e desfrutar de muito mais dinheiro do que
já teve em toda a vida.
Neste contexto, a contratação de Berenice, uma senhora
de meia-idade, franzina, mãos marcadas pelo ofício de limpar desempenhado desde
menina, foi concretizada. A entrevista foi feita pelo casal, na sala de
estar:
- Precisamos de uma pessoa confiável, que permaneça na
nossa residência pernoitando, de segunda a sexta-feira, tendo o final de semana
inteiro livre.
- Eu posso morar com vocês caso necessário. Atualmente
pago aluguel. Vivo sozinha... Não tenho parentes no Estado. Tenho
disponibilidade total.
O casal, através de uma troca de olhares, demonstrou
achar interessante a ideia de ter uma doméstica vinte e quatro horas por dia,
sete dias por semana dentro da casa, disponível para atender a todas as
demandas e caprichos. Vítor continuou a entrevista:
- Muito bem, temos no porão, passando a lavanderia, um
quarto com banheiro e, ao lado, uma cozinha compacta. Pode morar lá, não
cobraremos aluguel do espaço, nem descontaremos do salário. Claro, em troca
você nos atende sempre que for necessário, e se quiser passar os finais de
semana em outro lugar, nos avise uns dias antes.
- Sim, eu topo.
- Você vai precisar comprar os próprios alimentos,
quando quiser fazer uma refeição só para si.
- Sim.
- Seu pagamento vai ser de um salário mínimo e meio,
já com os descontos.
- Muito obrigada. Nunca recebi tanto dinheiro na
vida.
O salário a ser pago para a empregada ainda não tinha
sido conversado entre Flávia e Vítor. Ela achou a oferta generosa demais, e
começou a se questionar se o marido já não a conhecia, se talvez ela fosse mãe
de alguma amante, ou até amante, hipótese última que logo foi descartada:
geralmente suas amantes eram jovens adultas, altas e loiras. Vítor sabia que,
mesmo ganhando muito como CEO, juntando às despesas da esposa, o pagamento
pesaria no final do mês, mas seria de grande valia para jogar na cara de Flávia
quando esta relembrasse a traição: “eu até pago uma empregada para você não
fazer mais os serviços domésticos, sou um bom homem”.
- Por favor, então assine este termo. Aqui consta o
que combinamos, e nas observações acrescentei que você morará conosco, ocupando
umas peças no porão.
Com bastante dificuldade em traçar sua assinatura no
papel, Berenice escreveu seu nome com letras maiúsculas de imprensa, devolvendo
a folha para Vítor.
- Sim, posso. Estarei aqui às oito horas da manhã, com
minha mudança.
- Você precisa que alguém busque suas coisas?
- Não precisa, o pouco que tenho cabe no porta-malas
de um taxi. Obrigada.
O casal acompanhou a senhora até a porta da casa e
ficaram vendo-a seguir, a pé, até a parada de ônibus. Ao fecharem a porta, os
rostos até antes simpáticos e receptivos se fecharam. Flávia logo cuspiu seus
pensamentos na cara do marido:
- Na mínima é mãe de alguma amante sua. Pagar tudo
isso para uma pessoa que vai morar nesta casa, comer nossa comida, gastar nossa
luz e água? Só pode ser favor para algum rabo de saia!
- Não, juro que não! Você sabe que nunca mais vou
cometer nenhum deslize. Nunca a vi na vida. Ela respondeu ao anúncio da
internet. Só.
- Não sei se acredito em você...
- Acredite sim! Você é a mulher da minha vida.
O silêncio tomou conta do ambiente. Berenice, no dia
seguinte, já se tornara moradora da casa de Flávia e Vítor, e logo se pôs a
limpar, com atenção aos detalhes, cada canto da grande residência.
Os dias foram passando. Flávia acompanhava de perto
tudo que a empregada fazia, desde o amanhecer, preparando o café da manhã para
o casal, a organização de rotina, refeições, até quando esta descia ao porão
para descansar, à noite. Ambas, sozinhas durante a semana, trocavam poucas
palavras, com as conversas resumidas ao cardápio do dia e tarefas a serem
realizadas. Cada vez que Flávia observava a senhora, imaginava ela sendo a mãe
ou tia de alguma amante de Vítor, e como uma coisa leva a outra, assistia à
reprise do seu marido deitado sobre o corpo da última amante, no sofá do
escritório onde ele trabalhava. Se Flávia soubesse o que presenciaria, nunca
teria nem cogitado fazer uma visita surpresa ao homem na hora do almoço. Mas,
se nunca tivesse feito isso, não descobrira a traição. Sentada no sofá, olhando
para um ponto fixo na lareira, Flávia foi interrompida pelo toque suave da mão
magra de Berenice em seu braço.
- Com licença, a senhora está bem?
- Estou... Estou.
A empregada baixou a cabeça e voltou a tirar o pó dos
móveis. Flávia, se sentindo mentalmente cansada, chamou:
- Berenice, sente naquele sofá ao lado. Quero
conversar com você.
Berenice prontamente atendeu ao pedido, ainda
segurando o espanador com suas mãos tísicas e enrugadas.
- Berenice, você já foi traída?
- Senhora, sim. Meu único companheiro me enganava,
saia com outras mulheres, e fez isso até o fim da vida dele, quando um dos
maridos traídos o matou, no bar perto de casa – respondeu a senhora, com os
olhos mareados.
Flávia voltou a ficar com o olhar fixo, distante, mas
desta vez parado nas mãos da empregada, que apertava e girava lentamente o cabo
do espanador. Sentindo que o assunto trouxe à casa um mal-estar, Berenice pediu
licença e voltou a espanar os móveis. A esposa lembrou-se dos dedos do marido,
submersos na blusa da amante, enquanto trocava carícias e intimidades sobre o
sofá da empresa. E mesclava suas memórias com as mãos que lhe causavam repulsa:
as de Berenice. Para Flávia, as da senhora eram típicas de quem nunca se
valorizou na vida, devotada a limpar a sujeira dos outros. E que, talvez,
tivessem segurado no colo uma loira jovem e linda que, naquele momento, estaria
aos beijos com Vítor.
Duas semanas se passaram. Flávia se fechara mais e
mais dentro de si, misturando fatos e suposições. Numa noite, enquanto o casal
esperava a empregada servir um ensopado, Vítor recebeu uma ligação que o fez
mudar de cor, silenciando rapidamente o telefone.
- Quem estava te ligando?
- Não reconheci o número. Certo que era
telemarketing.
- Mas neste horário?
- Amor, já falei que mudei.
Berenice aproximou-se da mesa e foi descendo a panela
com a sopa quente entre o casal, mas quando esta estava quase tocando a
superfície, as mãos da empregada perderam a força, e com o impacto do objeto,
respingos voaram sobre os três:
- Que é isso Berenice! Você me queimou! –
gritou Flávia, levantando-se com raiva.
- Eu sinto muito. – desculpou-se Berenice, secando
suas mãos, também atingidas pelo caldo fervendo, no avental.
- Flávia, tenho certeza que ela não fez por querer.
Vou buscar uma pomada para tratar nossas queimaduras – anunciou Vítor.
- Quanta gentileza, Vítor! Primeiro uma ligação
misteriosa, depois ela “perdeu a força”. Que interessante...
- Flávia, quanta besteira!
- Besteira? Você se grudando na loirinha do trabalho é
que foi besteira! Fala a verdade, tá saindo com que colega agora, grande
CEO?
O marido deu as costas para a mulher que esbravejava,
retornando com a pomada e dando um pouquinho do medicamento primeiro para
Berenice, depois para a esposa.
- Vamos voltar a jantar. Berenice, vá descansar.
Flávia nem quis continuar a refeição, e subiu ao
primeiro andar, batendo todas as portas que cruzara. Berenice desceu para o
porão e Vítor jantou sozinho. Antes de dormir, ele foi até o quartinho da
empregada, pedir desculpas pela grosseria da esposa:
- Sinto muito, Berenice. Ela está ainda chateada
comigo.
- Tudo bem, entendo. Obrigada pela gentileza de vir
falar comigo.
- Eu que agradeço pela compreensão. Boa noite.
- Boa noite.
Flávia, escondida no topo da escadaria, só observava Vítor
retornar do porão, na escuridão da casa, e dirigir-se ao quarto. E tudo ia ficando
cada vez mais claro: ela era sim, mãe de uma amante que ainda não sabia quem
era. Aquelas mãos nojentas e inúteis criaram uma linda menina, que se tornou a
mais nova loirinha de seu marido mentiroso.
Planos começaram a surgir na cabeça da mulher. A última semana
mostrou a Vítor e Berenice uma Flávia magicamente colaborativa, simpática e
prestativa. Ela fez questão de ajudar a empregada em diversos momentos,
inclusive riram muito fazendo biscoitos para quando o marido chegasse cansado
do trabalho. No domingo à noite chovia muito, e após uma refeição alegre, com
direito a Berenice ocupar a mesma mesa que os patrões, um tanto embriagado o
marido decide ir dormir.
- Obrigado pela companhia, espero minha linda mulher no quarto o quanto
antes. Berenice, bons sonhos.
- Obrigada, senhor Vítor. Para você também.
Ao perceber que o esposo desaparecera na escadaria, Flávia abraçou
Berenice por trás, falando ao pé do ouvido da senhora:
- Obrigada por estar fazendo parte da nossa vida. – Uma das mãos
de Flávia largou a senhora por um momento, retornando rapidamente com um pano
que foi colocado com força sobre o nariz da empregada.
- Bons sonhos.
No dia seguinte, o marido estranhou que Flávia havia
preparado o café da manhã, e questionou:
- Cadê Berenice?
- Nesta semana eu a deixei viajar para o Mato Grosso,
visitar uns parentes. Ah, desculpa por não ter te falado. - Ela merece né!
Sempre tão querida.
- Merece. Quando Vítor saiu, Flávia desceu até o porão e
abriu o cadeado que prendia Berenice a uma coluna no quartinho.
- Saia daí sua inútil, e limpe a casa.
Berenice, com os olhos inchados de tanto chorar, estava com os pés
presos por correntes, e na extremidade de seus antebraços, faixas apertadas
ocupavam o lugar que outrora era das mãos.
- Sentindo falta das suas mãos? Tadinha! Como vai acariciar
os cabelos loiros de sua jovem filha?
- Dona Flávia, eu não tenho filha.
- Não minta. Ela deve estar agora mesmo debaixo do corpo do
meu marido, deixando-o ofegante.
- Dona Flávia...
Pelos cabelos, a esposa arrastou Berenice até a sala de estar,
colocando- a de quatro diante de um balde cheio de água e desinfetante, e um
pano.
- Esfrega este chão!
- Dona Flávia, estou cada vez mais fraca. Minhas
mãos... – Berenice chorava e gemia de dor. As ataduras não iam mais dando
conta de estancar o sangue da mutilação.
- Você vai limpar, mesmo que com a boca! – Flávia retirou
o pano do balde, e enfiou na boca da empregada, empurrando a cabeça dela contra
o chão.
- Esfregue!
O corpo de Berenice, que sangrou por horas, foi esvaindo-se de
vida e, no meio da sala, ela morreu. Sem demonstrar remorso, a esposa arrastou
o cadáver até o jardim dos fundos, e jogou-o num velho poço artesiano
desativado. Com raiva, limpou todos os vestígios de sangue e aguardou o marido,
no final do dia.
Durante o jantar, Vítor percebeu que a mulher não parava de mexer
na gola da camiseta, puxando-a para frente.
- Amor, você está bem?
- Sim, só acho que esta camiseta está me apertando. Quer saber,
vou trocar por uma com uma gola mais aberta.
- A Berenice está fazendo falta. Você sabe quando ela volta? –
perguntou Vítor.
- Ela não disse quando voltaria.
No quarto do casal, marido e mulher dormiam quando o relógio
marcou meia-noite. Flávia acordou sentindo gosto de desinfetante na boca, e uma
sensação de quem estava tendo o pescoço apertado.
- AAAAAH!
O grito acordou Vítor, que rapidamente acendeu a luz e sentou na
cama:
- O que houve, amor?
- Não sei, sinto algo apertando meu pescoço.
- Você está desde a janta sentindo isso. Deve ser ansiedade ou mera
impressão. Vamos voltar a dormir.
- Talvez seja psicológico mesmo – concordou Flávia.
Uma hora da madrugada, novamente ela acordou em pânico.
- Eu sinto algo apertando meu pescoço.
- Por favor, Flávia! Eu preciso trabalhar amanhã
cedo.
Duas horas da madrugada, Flávia vai saindo do mundo dos
sonhos com a carícia de dedos finos em seu rosto, que aos poucos vão se tornando
arranhões que ardiam. Vítor, novamente acordado por um grito, ligou a luz e viu
o rosto da esposa todo marcado por unhas.
- Meu Deus, Flávia! O que você se fez?
- Eu não fiz nada! Meu rosto arde!
- Você está toda arranhada, inclusive está sangrando um pouco. Pare com
isso, preciso dormir!
A esposa foi até o banheiro do quarto, e ao olhar-se viu
exatamente o que Vítor descrevera: marcas horizontais que escorriam de sua
testa ao pescoço. Imediatamente ela lembrou-se de que havia deixado as mãos de
Berenice no quarto do porão, cômodo que esquecera de limpar. Vítor voltara a
dormir rapidamente.
Sem fazer barulho, ela desceu até o porão e se deparou com o
quarto todo ensanguentado. Sangue agora que estava seco pelo chão, cobertas e
paredes. As mãos da empregada não estavam em lugar nenhum.
- Eu juro que deixei aqui no chão! – a mulher repetia para si
mesma.
Flávia procurou e procurou. Três horas da madrugada. Cansada da busca, a esposa
acabou adormecendo sobre os lençóis embebecidos no sangue de Berenice,
sentindo-se naufragar em seu próprio feito: em sua vitória sobre o marido
traidor e a mãe de sua amante.
Três e meia da madrugada, Flávia foi acordada por dedos magros e
enrugados comprimindo seu pescoço. Quanto mais ela se debatia, mais o ar
parecia esvair-se. Tentando se livrar do sufocamento, ela procurava
desesperadamente os braços inimigos, mas era inútil. Eram somente as mãos: as
mãos de Berenice.
Este conto foi narrado por Sérgio Pires, para ser transmitido no programa Creepy Metal Show, na Rádio Putzgrila: agradeço de coração pelo apoio!
O link para ouvir a narração é
Todas as madrugadas, na mesma hora, Rita acordava com sede. Era incrível, 3h30 em ponto o sonho terminava, um cachorro começava a latir, um barulho grande era ouvido pela casa e lá estava a mulher, desperta. E a sede era tanta que não tinha como procrastinar. Era levantar, descer o lance de escadas, passar pela sala, chegar na cozinha e beber um copo de água. Depois a noite prosseguia, os sons cessavam, os cachorros dormiam e os sonhos voltavam. Durante o café da manhã, eram sempre as mesmas confissões: - Amor, mais uma vez acordei às 3h30 com sede – ela desabafava com o marido. - De novo! - Sim. - Que saco... Amor, eu vou trabalhar hoje até mais tarde. Temos que terminar a instalação da rede elétrica do novo supermercado que vai abrir segunda-feira. Mas qualquer coisa me ligue. - Tá bom, vou ficar vendo séries. Te espero acordada. - Acho que vai levar a madrugada toda. Temos muito o que fazer ainda. Estamos atrasados e o contrato precisa ser cumprido. - Seu chefe precisa contratar mais funcionários. - Mão fechada como ele é, nunca vai! - Te amo. Se cuida. - Pode deixar. Também te amo. Rita gastou sua última sexta-feira das férias do trabalho organizando a casa, tirando o pó dos móveis e lavando o chão. Não era o programa mais divertido, mas de qualquer forma os dias anteriores foram bem aproveitados com passeios pela cidade e visitas a amigas e parentes. A noite chegou. Depois de um banho relaxante, e de vestir sua camisola, Rita deitou-se na cama e colocou uma série para assistir. Ela gostava de ver romances adolescentes, por mais que sua vida adulta já tivesse começado há alguns anos. As horas passaram e o sono chegou de mansinho. A televisão desligou sozinha depois de um tempo, e ela adormecera por cima das cobertas. Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Poucos segundos depois, os cachorros latiram e batidas começam a ser ouvidas na porta de entrada. - Não acredito que o Fábio fez de propósito chegar neste horário. Ele vai ver só! Rita desceu as escadas rapidamente e abriu a porta. Não podia ser outra pessoa, pois ela teria que ter aberto o portão de entrada, ou pulado a alta cerca eletrificada que protegia a casa. Ela não viu ninguém. - Amor, onde você está? ... - Amor, que brincadeira sem graça! Cadê você. Um barulho forte veio da cozinha, os cães latiam com raiva. Mas quase todos os dias esses sons surgiam na madrugada, nem valia o esforço de se preocupar. Agora Fábio enchendo o saco, isso sim não poderia ser ignorado. - Quer saber, cansei, vou dormir. Você tem chave, entre quando cansar dessa palhaçada. A mulher trancou a porta, voltou para o quarto e deitou-se na cama. O celular começou a tocar. Era o marido: - Alô, Rita? - Amor, para de brincadeira, entre logo! - Linda, como assim? Eu ainda estou no trabalho. Só queria saber se estava acordada neste horário. Eu nem ia deixar chamar muito, mas como atendeu, tenho certeza que, para variar, acordou na hora da água – falou soltando uma tímida risada. - Por hoje chega né. Me deixa dormir. Boa noite. - Boa noite. Um forte barulho de passos pesados se aproximavam pela escadaria, subindo até o quarto onde ela estava. Tudo ficou escuro... ... Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede. Sem fazer barulho, desceu as escadas e foi até a cozinha, ouvindo os cachorros uivando no terreno da vizinha. A mulher abriu o balcão aéreo, pegou um copo, ficou de frente à torneira, encheu-o de água e bebeu. Ao se virar, viu uma moça com o rosto esfumaçado que a imitava. Ela estava vestida com uma camisola amarela, com o tórax e abdome repletos de perfurações, jorrando sangue pelos ferimentos o qual escorria pelas pernas e empoçava no chão. Rita queria gritar, mas ficou completamente paralisada. Ela tentou piscar, tentando descobrir se era um truque da mente, mas a figura assustadora permanecia estática diante dela, repetindo com uma voz baixa, lamentosa e pesada: - Você ainda não sabe... ... Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela sentia muita sede. E os dias, semanas e meses seguiam sempre iguais, resumidos a madrugadas. - Você ainda não sabe... Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. Fábio estava ao seu lado, e ela descia as escadas, pegava o copo, enchia de água, bebia... - Você ainda não sabe... Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou. A imagem de Fábio estava cada dia mais apagada, como se o tempo o diluísse entre os móveis do quarto. Descer as escadas doía, a água não matava mais a sede... - Você ainda não sabe... Às 3h30 o sonho no qual caminhava por uma floresta escura interrompeu-se e Rita acordou, e ao passar pelo espelho se viu com a camisola amarela. Descendo as escadas, sentido muita dor no corpo. Tocava-se. Tinha medo de ligar a luz. Sua roupa estava molhada. Na cozinha, o copo, a água. Mas tudo estava bagunçado, fora de lugar, cheirando a podridão... - Você ainda não sabe... Às 3h30 o sonho no qual caminhava... E lá estava Rita, desperta. Desceu as escadas, chegou na cozinha, ligou a luz e caída no chão viu-se sem vida, sangrando no piso enquanto uma sombra escura saltava pela janela. Uma sombra que cheirava a ódio e maldade. O corpo doía mais e mais, e as feições da presença oculta se tornaram nítidas. Rita estava diante de si mesma. O tempo todo. A aparição abriu um sorriso misterioso no rosto e esticou os braços para frente, chamando a mulher com as mãos: - Agora, finalmente, você sabe...
Jaqueline estava ansiosa para, finalmente, encontrar o rapaz com o qual vinha conversando durante semanas, pela rede social. A chuva intensa dos últimos dias, que alagou inúmeras casas e causara danos em diversos estabelecimentos comerciais, finalmente parecia ter dado uma trégua, apesar da ausência do sol. Desde que a moça chegou à capital, ainda não tinha feito muitos amigos, mas sentia que havia encontrado um amor, uma razão para se sentir viva, antes mesmo de ter com quem confidenciar isso. Quem diria que uma solicitação de amizade faria o coração bater mais forte. No trabalho, escritório da sede administrativa da madeireira Atlanta, o telefone tocou. Era Micael. - Alô! - Bom dia minha musa dos olhos brilhantes. - Bom dia Mica. - Estou te atrapalhando? Você está falando tão baixo... - Estou escondida no depósito aqui do escritório – Jaque deu uma risadinha tímida – mas pode falar sim. Estava com saudades de ouvir sua voz. - E olha que nos falamos ontem à noite, luz da minha vida. - Meu amor! - Vamos nos encontrar finalmente esta noite? - Claro, não posso mais esperar para te ver pessoalmente. - Eu sugiro aquele barzinho que tem no final da rua Hermes, no seu bairro mesmo. Acho o lugar bacana. - Ele é um pouco pacato, não tem música ao vivo, nem muitos frequentadores. - Mas assim é melhor, podemos conversar com mais tranquilidade. Não concorda? - Concordo meu amor. Esta noite às oito horas? - Combinado, te encontro lá. Jaqueline saiu de fininho de onde estava escondida, para que ninguém descobrisse que havia quebrado a regra de não utilizar o celular durante o expediente. Nunca os minutos passaram tão devagar quanto naquele dia, apesar da demanda por madeira estar alta. Quando finalmente pode ir para casa, apressou-se em tomar banho, colocar sua melhor roupa, maquiar-se e sair para seu tão esperado encontro. O coração pulava forte no peito, as pernas tremiam e as mãos suavam. Somente duas mesas estavam ocupadas: uma na parte de dentro do bar, por um casal de meia idade que pareciam tentar engolir seu cansado relacionamento com cervejas, e outra, na calçada, por um rapaz de costas para a rua, vestindo calça jeans preta e camiseta social verde. Seria ele? Será? Era sim. Quando Jaqueline estava a poucos passos de Mica, ele virou-se com um sorriso largo: - Seus olhos realmente são muito brilhantes. - Obrigada. - Por favor, sente-se. Jaque se sentou bem em frente à Mica, e ambos ficaram se olhando sem dizer nenhuma palavra. A rua estava silenciosa, a noite escura, como se prometesse mais chuva pela frente. Mica a olhava nos olhos, como se quisesse ler sua alma. Após o garçom deixar na mesa a garrafa de cerveja e dois copos, o rapaz quebrou o silêncio: - Podemos pedir algo para comer? - Sinto muito, estamos sem nada para oferecer além de bebidas. O garçom de aspecto cansado voltou para dentro do bar, continuar a limpeza do piso, que ainda estava cheio de lama da tempestade anterior. O casal que ocupava a outra mesa estava indo embora. Só sobrava no lugar Jaqueline e Micael. - Não há nada mais sincero que o olhar. Ele não mente, não trai. Foi a primeira coisa que reparei em suas fotografias: seus lindos olhos castanhos. - Obrigada. - Você está com fome? - Um pouco... – Na verdade, por conta da ansiedade, Jaqueline não comera nada o dia inteiro, e estava se sentindo muito fraca. - Seu olhar é minha fonte de energia. - Não seja exagerado, mas obrigada pelos elogios. - É verdade, eu me alimentaria dos seus olhos. Seu olhar cheio de luz, de vida. Jaqueline sentia seu corpo amolecer, uma forte sensação de sonolência que não lembrava ter tido após ter tomado cerveja na vida. A cabeça pesava cada vez mais e uma inércia a paralisava. Micael levantou da cadeira e aproximou-se dela, que já não conseguia falar ou fazer nenhum movimento. Lentamente ele tirou do bolso um canivete, e cirurgicamente arrancou os olhos da moça, colocando-os num pequeno saco plástico, junto a outros de diferentes datas. - Vou guardar com muito carinho essa luz que me alimenta, não se preocupe. Sem ser notado pelo garçom, Micael foi desaparecendo, serpenteando pela rua, surgindo como um vulto de luz por debaixo dos postes solitários, sumindo na escuridão.
Este conto diz mais no vácuo entre passado e presente do que na história redigida. Não precisamos repetir o que sofremos, pois é a única forma de se libertar às vezes.
Quando Viviane nasceu, a
família não comemorou muito. Sim, fora uma emoção o mistério da
vida acontecendo diante dos olhos do marido, mãe, avó e a parteira.
Mas os sorrisos encolheram-se um pouco ao ouvirem a frase:
- É uma menina.
Os parentes vinham visitar o
casal, com mimos, expectativas e pitacos:
- Não acredito! Não
conseguiu fazer um varão! – exclamava o compadre.
- E quem vai levar o
sobrenome da família adiante? – questionava o avô.
- Quero ver quando casar, a
despesa que vocês vão ter... – comentava a comadre.
- Vai ter que amarrar os
gaviões – ria a sogra.
E enquanto a menina crescia,
a família aumentava. Os varões chegavam: José, Fabrício, Ernesto
e Joaquim. Depois deste último, o útero da matriarca teve que ser
retirado. Tornara-se, para seus pares, um pouco menos mulher e, para
aliviar sua tristeza, cuspia palavras amargas na filha.
E assim Viviane foi
crescendo, e a cada dia aprendendo mais sobre lavar, secar, guardar e
cuidar dos irmãos. Estudar? Para quê? Um casamento com um
pretendente arranjado era mais que o suficiente para exercer seu
papel na sociedade.
Um dia o casamento lhe bateu
a porta, como uma tempestade de verão repentina. Viviane se viu
diante da reprise de uma vida que ainda não a pertencia, mas que
parecia seu destino. Sabia que sua voz não era audível aos ouvidos
da família, que seus sonhos eram guardados com as roupas e que
varria para debaixo do tapete suas discordâncias e amarguras. Bom
seria ser José, Fabrício, Ernesto e Joaquim, orgulho do pai,
participantes dos negócios, que liam e faziam contas e comungavam de
risadas folgadas após as refeições.
Bem que ela quis fugir,
enquanto o vestido branco lhe era apresentado, o salão da comunidade
decorado e os detalhes organizados. Viviane ficava se imaginando
lendo os poucos livros empoeirados na estante, trabalhando como os
irmãos, apaixonando-se. Perdida entre pensamentos, quando se deu por
conta estava no altar, diante de um homem que mal conhecia para
concretizar um destino que não queria. Na hora que o padre perguntou
se ela aceitava casar-se com Antônio Ridegatto, ela respondeu...
- Mãe, que triste a vida da
vovó. Ainda que os tempos mudaram. E eles foram felizes?
- Ela foi uma ótima mãe.
Ele foi um bom pai. Mas pouco se falavam e, como você se lembra, o
vovô terminou a vida dormindo no quartinho de hóspedes.
- Eu não me lembro deles
conversando muito quando íamos lá nos domingos...
- Pois é, então se você
não quiser que eu escolha seu marido, trate de escolher bem seu
namorado.
- Ai mãe, ninguém mais faz
isso.
E numa risada uníssona,
envolvidas num abraço, ambas agradeceram aos esforços de todas as
avós, que a passos curtos e perseverantes, construíram os caminhos
para as mulheres das próximas gerações.