Esse conto vai para todas aquelas mulheres que conseguiram superar seus agressores.
Um
brinde a solidão
E
ela permanecera sentada no sofá, respirando profundamente, brindando
com a solidão.
Cedo,
antes do despertar do sol, Sofia, entre tantas escolhas, optou por si
mesma. Naquela manhã tocou sua pele, marcada, com um afeto
desconhecido, ímpar. Viu seus olhos no espelho e notou: eram
castanhos, da cor de seus cabelos, da cor que vira que eram em sua
infância. Ah, aquele Natal em que ganhara de sua mãe uma boneca, a
qual nomeara de princesa Victória, que morava em um imenso castelo e
que era cortejada por um príncipe, que a defenderia de todos os
males, que daria a vida por um simples beijo, que, e eram tantos os
quês, que alimentaram a sua pureza infantil.
O
sol entrava pela janela do quarto, devagar, aquecendo aquele ambiente
tão frio, apertado demais para dois, assustadoramente imenso para
um. Ainda contemplando sua imagem refletida, aos poucos o corpo de um
ser humano ia tomando forma. O contorno feminino, por tantas vezes
negligenciado, ia surgindo como uma imagem sacra. Braços, pernas,
ombros, face. Sofia respirou profundamente e admirou o movimento de
seu diafragma. Soltou o ar, suavemente, devagar como uma pluma solta
a brisa de verão.
Linha
após linha ia delineando-se feições jovens, mas marcadas pelo
chicote impiedoso do convívio com a loucura. Agora, já não era o
rosto de outrora, e esse não voltaria mais, mas o olhar de ontem,
perdido, que vinha manifestando-se entre turbilhões de pensamentos
confusos e insistentes. A cada segundo deleitava-se mais e mais com
as ideias que emanavam de sua razão. Nesse momento era necessário
ouvir a voz da tida consciência. Por que calara-se antes? Por que
nunca dominara as emoções que transbordavam seu ser? Por que Sofia
não a ouvira antes…
Pensamentos que tomavam conta de sua mente e arrepiavam sua pele.
Queimava-a por dentro e partia seu coração. Viu seus olhos no
espelho novamente e notou: eram castanhos, da cor de seus cabelos, da
cor que vira que eram em sua infância. Já podia abri-los, já podia
observar mais alto, erguer sua cabeça, olhar para um céu onde tudo
é bom. Onde o amor prevalece e a vida possui sentido.
E
era isso que faria. Abrir as asas e voar. Ser outra vez ela mesma,
resgatar a beleza de sua alma e não temer o próximo. Nem o próximo
que divide o mesmo espaço que deveria se chamar 'lar'. Mas nunca foi
um lar, nunca seria. Não dessa forma.
Quantos
anos de cativeiro nos braços da insanidade em uma relação doentia.
Depois de muito observar, a completude de seu ser fez-se reintegrada.
Unidos os pedaços dela espalhados pela casa, prometeu a si mesma que
não choraria mais. Faria aquilo que precisava ser feito, que
desejava como um sonho bom.
E
ele entrou pela porta da frente da casa, encontrando-a sentada no
sofá. Ele foi seu abismo e sua salvação, seu alimento e sua fome.
Teve fome de amor e alimentou-se do gosto amargo da insensatez. Ele
foi um refúgio e um delator, uma coroa de espinhos num reino de
sofrimento. Nos braços dele encontrou a guerra e perdeu a paz. Ele
foi um amigo traidor. A cada toque ríspido em seu corpo, ele tentou
mostrar que o amor era dor. E ela o olhava mais e mais, sentada no
sofá. Ele foi o atalho que a levou para a escuridão, a ferida mal
cicatrizada, o beijo que queimava sua boca e destruía seu coração.
Ele era, mas não seria mais.
Naquele
momento, diferente de todos os outros, Sofia sentiu que existia, e
nenhuma lágrima caiu do rosto dela. Ele entendeu. Ele não a
reconheceu. Ele foi embora.
E
ela permanecera sentada no sofá, respirando profundamente, brindando
com a solidão.
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