terça-feira, 2 de maio de 2017

A Vontade - Etapas de uma loucura

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Nunca escrevi um texto tão pesado. Estão alertados


A vontade é um processo de quatro etapas: estímulo, indecisão, decisão e execução. Eu acrescento um: resultado.
       Na grande cidade chamada Condorázia, habitada por cem mil pessoas, acabava de se formar em psicologia o grande Abrão Costa Veríssimo Jr, filho único de Abrão Costa  Veríssimo e Piedade Veríssimo. Agora esse fruto pródigo seria um participante da alta sociedade, sendo denominado apenas como Veríssimo Jr. A honra da família e o futuro membro do mais digno mundo culto.
       Ele iniciaria seus atendimentos na segunda-feira próxima. Apenas uma paciente, uma mulher chamada Isabela. Idade: quarenta anos. Mais detalhes: nenhum.
       Era tudo o que sabia sobre ela.  Estava muito ansioso, finalmente colocaria em prática o vasto conhecimento adquirido ao longo de seus fervorosos estudos. Quantas noites sem dormir estudando, quantos livros lidos. Era a realização de um sonho.
       - Freud orgulhar-se-á de mim! – Exclamava diante do espelho, fitando-se dentro de seus próprios olhos negros.
       Esses atos aconteceram no domingo. A noite passou e finalmente chegou a manhã do dia tão aguardado: segunda-feira.
       Feliz, Veríssimo Jr. vestiu seu terno italiano, gentilmente dado por seu avô paterno,  limpou a lente de seus óculos e colocou-os em seguida. Por fim, penteou os curtos cabelos escuros e pôs os sapatos pretos, lustros como todo o restante do consultório novo. Uma sala no melhor prédio da cidade dada por seu pai como presente de formatura.
       Arrumado, o homem, ou melhor, o senhor, caminhou até o portão de sua casa, por onde sairia para seu primeiro dia de jornada.
       Eram sete horas da manhã. Na casa da frente Clara saía para ir ao colégio. Ela era uma moleca de quinze anos, linda como a mais bela das musas. Trajava a saia da escola, com suas sapatilhas pretas e a camisa da instituição educacional. Ao ver o psicólogo parado a fitando, acenou-lhe, cumprimentando-o.
       Ele respirou fundo, tinha a visto nascer e crescer. Diversos finais de semana viu-a brincando com as crianças vizinhas enquanto estudava para o vestibular. Isso havia oito anos. Mas, retomando o que iria fazer, entrou no seu carro, o qual estava estacionado na rua, e dirigiu até a sala de trabalho.
       Lá o ambiente era lindo. As paredes brancas sustentavam poucos quadros cubistas. Os sofás, um de frente para o outro, transformava o local em um sítio aconchegante. Ao lado esquerdo da sala, uma estante cheia de livros. Todos sobre psicologia, e nenhum outro assunto.
       Enquanto a paciente não chegava, ele sentou-se em sua cadeira e pôs-se a contemplar o local, seu lugar.
       Isabela chegou às nove horas. Era uma mulher atraente e não possuía nenhum anel que denotasse compromisso com alguém. Também possuía uma voz doce, revelada através do rápido diálogo com a secretária Gertudres, na sala de espera. Não aparentava problemas.
       Mesmo Veríssimo estando solteiro aos trinta e oito anos, tratá-la-ia profissionalmente. Para tanto imaginaria a maturidade adquirida quando conseguiu ingressar na universidade, após voltar da França, onde estudava o idioma local. Esse fato o marcara, pois era um dos alunos mais velhos a frequentar as disciplinas do curso de psicologia, e isso o fazia sentir-se mal. Tivera que realizar o vestibular aos vinte e oito anos! Que tormento para alguém tão culto. Mas prossigamos.
       - Sente-se e fale sobre o que lhe incomoda, ou melhor, sobre o que quiser! – Afirmou o homem após ambos estarem acomodados em seus respectivos lugares.
       Ela começou a contar sobre sua vaidade, extrema, seu trabalho na loja de conveniências, sua rotina em assistir novelas, etc... Quando faltavam dez minutos para o final da sessão, escapou-lhe a seguinte afirmação:
       - Às vezes minha razão não concorda com certos atos que pratico, não sei explicar. Cuido de um menino, sabe... Sinto um desejo e após executo. Vendo o resultado sinto fortes arrependimentos, mas sinto o prazer de ter realizado.
       Durante a fala da paciente, o senhor via imagens de Clara, sempre esperta no jardim de sua casa aos domingos. Linda moleca. Parecia um transe que tomava conta de seus pensamentos...
       - Bem, já é hora de terminar. Até semana que vêm. - Falou Veríssimo despedindo-se de Isabela.
       Nesse primeiro dia não havia mais pacientes, o jeito era estudar o que ela tinha. Mas o homem, sempre culto, já definira como “vontade anormal”, isto é, a mulher não seguiria o ciclo normal desse fator, que seria estímulo, indecisão, decisão e execução. Inferência pessoal. O que ela fazia? O que significava o menino? Que prazer era esse? Deveria descobrir aos poucos, como um senhor equilibrado.
       Durante o solitário almoço, o psicólogo tentou colocar-se no lugar de Isabela. Imaginou-se em uma casa com uma menina a brincar até o momento em que ele resolvesse...
       Não, que pensamento indigno! Não poderia estar acontecendo isso, seria um crime! Nesse caso não deveria ser resolvido por ele, mas por uma delegacia. Intolerável, repugnante e inimaginável. A mulher não poderia sentir prazer com essa maldade. Clara? Deveria parar de pensar nisso. Tinha vinte anos a mais que a doce garotinha. Controlaria suas forças instintivo-emocionais. Era um grande homem, um senhor.
       Assim almoçou. O dia continuava passando. As pessoas agiam, escrevendo suas histórias vitais enquanto um vento regia a sincrônica respiração.
       Após a tensa tarde, Veríssimo dirigiu-se a sua casa e ao chegar a frente ao seu portão viu que a musa de seus pensamentos repreendidos beijava ardentemente um outro jovenzinho, que após o ato afastou-se dela até sumir. Clara, percebendo o olhar fixo de seu vizinho Abrão, acenou-lhe como de costume.
       Sentia o homem dentro de si uma confusão de sentimentos. Sua mente lembrava-o do filósofo Nietzsche colocando que aquilo que se faz por amor está além do bem e do mal. O corpo pedia uma execução do estímulo que brotava da sua mente. Ela era linda e acabava de virar-se para entrar em seu lar. “Cuido de um menino... sinto o prazer de ter realizado”, ouvia Veríssimo nitidamente, latente em sua memória. Clara. Isabela. Um homem.
       Clara permanecia na calçada. Impulsivamente ele chamou a menina pedindo que ela o acompanhasse até sua casa. Seria rápida a visita. Sorridente e com toda a sua inocência, a menina aceitou. Os dois entraram silenciosamente pela porta. Depois de cerrada, o vespertino tornou-se noite e continuou  a enfeitar o escuro céu. As estrelas formavam diversos desenhos e pareciam dançar ao redor da lua. O vento quente, típico de uma noite de verão, era um convite para um brinde apaixonado.  Uma madrugada longa.
       Na manhã seguinte, às sete horas, apenas Abrão saiu do lar para cumprir sua rotina de trabalho. Ninguém mais veria a linda moleca.
       Quando chegara ao consultório, para sua surpresa, encontrou Isabela sentada à sua espera. Chorava muito, mal podia respirar. Suas mãos tremiam e a palidez cobria seu semblante vaidoso. Algo ruim deveria ter acontecido. Sério, pediu para que ela o acompanhasse.
       Ambos entraram no espaço de consultas e a mulher iniciou seu desabafo:
       - Não pude esperar até a próxima semana, aconteceu algo horrível. Lembra que eu falei sobre um menino? Ele tem quinze anos e hoje fugiu de casa após saber, por intermédio de uma coleguinha, que sua grande paixão também o fizera. Não sei se realmente fugiu, apenas ninguém sabe nada sobre ela, nem pais, nem a escola. Talvez seja cedo para pensar no pior. Não sei se você a conhece, seu nome é Clara Silva. 
       E prosseguiu emocionada, entre soluços:
       - Sempre fui exagerada na vaidade e chamava muita atenção, pois me dava prazer. Isso me fazia sentir culpada, pois me sentia superior a todos. Esse era o maior problema que possuía e que me levou a lhe procurar. Hoje com esse acontecimento acordei curada. O que faço?
       Clara. O garoto de quinze anos, a musa, Isabela, um homem, a pintura mais imperfeita de um pintor. A moleca não havia fugido e  o psicólogo tinha certeza disso. A noite passada pesava-lhe na consciência, mas sentia o prazer de ter realizado sua vontade, e por amor.
       - Acho que você não precisa mais de mim. Está curada. Pode partir e tente entender: o que se faz por amor está além do bem e do mal. – Proferiu o senhor Veríssimo, o psicólogo, à mulher, que foi embora sem mais voltar.
       Passou o tempo. Os livros foram mantidos na prateleira. O consultório foi fechado e ninguém mais pisou naquele lugar. A casa de Veríssimo fora abandonada, sumindo entre os arbustos que se ergueram no jardim. Clara ficou na memória de Abrão, sua eterna musa fria e insolente, que não compreendeu até o final o grande amor que ele sentia. Nem retribuíra! Queria esquecer aqueles momentos. Não conseguia.

       Olhando-se no espelho retrovisor, o psicólogo percebeu, em seu carro antes de conduzi-lo de forma a sumir para sempre, que ele era o senhor da cultura, Veríssimo Jr., a grande honra da família, um homem, um demente e apenas mais um animal.

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