A
evolução sem fim
O homem pode ser
capaz de tudo por amor, por honra, por dignidade... E por instinto?
Clóvis era um entregador de cartas.
Todos os dias caminhava pela grande Rua Desire para fazer as entregas
necessárias naquele dia. Porém no dia 15 de julho fora diferente.
Acordara cedo para o seu trabalho.
Estava cansado. Todas as semanas ele possuía o mesmo comportamento correto e
nenhum reconhecimento da empresa. Seus colegas de trabalho, principalmente o alto
e forte Rubens, vivia trazendo atestados médicos, e assim, trabalhava menos
dias que todos e, na última semana, recebera aumento! Um canalha de sorte.
Para enfurecer o homem mais ainda, esse
morava na rota de entrega da Clóvis.
- Chega, não lhe darei carta alguma! Vou
abri-las e ler. Odeio esse homem. –
Pensava o carteiro humilde.
Então um dia o ser masculino tinha que
entregar justamente uma correspondência ao inimigo. Tomando-a em mãos ele
sentou-se no cordão da rua e começou a violar o envelope. Tratava-se de uma
carta que havia retornado ao remetente, Rubens, e estava destinada a um tal de
Confidencio. Ela dizia:
“Querido primo Confidencio, estou
escrevendo após dez anos para que saiba um pouco sobre mim. Talvez nem se
lembre de mim, mas eu não o esqueci. Hoje está um dia de céu azul, quente, sem
nuvens. E aí?
Bem, estou morando sozinho em uma nova
casa. Comprei-a há uma semana. Ela situa-se no centro de Campana, na Rua
Desire. Sua cor é branca e possui apenas um andar, dividido em sala, cozinha,
banheiro, quartos e lavanderia. Também tem um grande jardim coberto por grama e
flores. Um bonito lugar que um dia conhecerá.
Gostaria de receber notícias da família.
Lembro bem de todos nossos amigos íntimos. Outro dia estava pensando na Bianca,
exatamente naquele episódio em que meu tio segurava uma arma contra minha
cabeça e graças a ela, que acionou a polícia, fui salvo.
Era um tempo bem difícil, meu amigo.
Agora sou carteiro. É, trabalho muito para me manter na vida. No começo foi
difícil me adaptar com a situação de ter que me submeter a certos atos para
desfrutar de um salário melhor. Esses fatos noturnos me fazem sangrara por
dentro.
Mas, como no papel é pouco, sinto que
devo me despedir sem mais narrar. Um grande abraço e espero seu comentário. ”
Clóvis comoveu-se com a correspondência
e resolveu não a devolver, mas fingir ser o tal primo e responder conforme
imaginasse ser mais coerente.
Se antes via o rival como uma peça
prejudicial à sua carreira, agora sentia pena, pois inferiu que o pobre homem
deveria manter alguma má subordinação para com o chefe. Isso era algo que ele,
Clóvis, não faria, era integro.
Na casa, após o expediente, o carteiro
escreveu uma resposta para Rubens, contando sobre a família, que estava bem,
sobre a felicidade em receber notícias e marcando um encontro na biblioteca da
cidade, mais especificamente na isolada e minúscula sala de leitura.
Isso seria no sábado às quatro horas da
tarde. Ninguém estaria no local, somente os dois homens e as funcionárias, que
pouco reparavam nas pessoas que transitavam no prédio recheados de livros.
O encontro aconteceu, e foi
surpreendente. Acompanhem:
Na hora marcada Rubens entrou na salinha
e percebeu que as luzes estavam apagadas, as cortinas fechadas e ele mal podia
enxergar as paredes repletas de estantes suportando grossas enciclopédias.
- Feche a porta, meu primo! – Uma voz
mansa pediu para o homem.
Com a mão fria sob a maçaneta, ele puxou
a abertura até cerrá-la, ficando sozinho com a voz misteriosa.
Do lado de fora se sentiu o barulho da
chave trancando o local, com ambos dentro.
Na rua os ratos corriam
desesperadamente. Estranho como esses animais convivem tranquilamente ao
habitat naturalmente humano. Marrons, brancos, cinzas, diversas cores.
Eles buscam os restos, submetendo-se a
qualquer situação e local na procura por uma vida digna. Roem o queijo e não
observam quem os dá, nem como o fazem. Felizes, pois seu cérebro não comporta
diversos aspectos humanos, apenas os da sociedade civilizada dos roedores.
Nenhum outro animal os adverte dos seus
atos, pois perderiam seu status quo e sentir-se-iam menores, iguais aos
bichinhos pequenos. Deixariam de serem deuses para serem seres vivos
inferiores.
Algo mais digno que o homo sapiens: eles
preservam a própria espécie.
Do lado de fora sentiu-se o barulho da
chave destrancando o local, e ambos saíram.
A noite veio, passou o final de semana e
iniciou-se mais uma rotina de trabalho na empresa de telégrafos. Rubens
aparentava uma alegria sobrenatural, cumprimentava a todos como a um irmão e
anunciava estar curado da depressão que possuía. A mesma que o fazia ficar
sempre em casa com falsos atestados médicos. Nunca estivera doente, apenas
deprimido. Já Clóvis chegou atrasado ao local, sério, não falou com ninguém e
seguiu ao depósito das correspondências a fim de pegar as de sua
responsabilidade e partir para a triste jornada.
Quando estava pronto para sair, sentiu
uma mão em seu ombro, que o fez virar e ver o antigo rival fitando-o sem parar.
O homem renovado pronunciou:
- Falei com meu chefe, agora você é meu
subordinado, ex-colega.
Essa subordinação nunca existiu.
Provavelmente aquele neurótico deveria ter negociado com o patrão em troca de
favores prazerosos. Sentiu muita raiva. Como podia ser tão cínico? Aquela tarde
ele havia trocado o sigilo sobre o segredo de Rubens por atitudes primitivas e
agora o homem tornou-se seu chefe.
- Isso se chama evolução das espécies,
meu bem. Ou você manda ou você permanece subordinado. – Disse o realizado
colega em sua nova função.
Clóvis sentiu um mal intenso. Precisava
mudar essa situação dramática. Naquilo viu que alguém novo acabava de ser
contratado. Um jovem ingênuo e o melhor: sem ninguém específico para mandar-lhe,
sem alguém que pudesse manipulá-lo, subordiná-lo.
O homem sorriu.