Olá povo da escuridão! Hoje quero postar o vídeo, com a narração do grande Sérgio Pires (apresentador do programa Creepy Metal Show - rádio Putzgrila). O conto é "As mãos de Berenice".
Ter
uma pessoa para fazer os serviços domésticos nunca esteve nos planos de Flávia
e de seu marido Vítor, hipótese esta descartada com inúmeros argumentos das
áreas financeiras, trabalhistas, afetivas e sociais. Da mesma forma, a mudança
para uma casa muito maior que aquela onde o casal morava anteriormente, e a
descoberta do caso extraconjugal do marido com uma colega de trabalho dele
também não tinham sido imaginadas. Para compensar o erro cometido, Vítor
começou a tratar a esposa com todos os privilégios e regalias que esta poderia
ter, permitindo-a abandonar o emprego e desfrutar de muito mais dinheiro do que
já teve em toda a vida.
Neste contexto, a contratação de Berenice, uma senhora
de meia-idade, franzina, mãos marcadas pelo ofício de limpar desempenhado desde
menina, foi concretizada. A entrevista foi feita pelo casal, na sala de
estar:
- Precisamos de uma pessoa confiável, que permaneça na
nossa residência pernoitando, de segunda a sexta-feira, tendo o final de semana
inteiro livre.
- Eu posso morar com vocês caso necessário. Atualmente
pago aluguel. Vivo sozinha... Não tenho parentes no Estado. Tenho
disponibilidade total.
O casal, através de uma troca de olhares, demonstrou
achar interessante a ideia de ter uma doméstica vinte e quatro horas por dia,
sete dias por semana dentro da casa, disponível para atender a todas as
demandas e caprichos. Vítor continuou a entrevista:
- Muito bem, temos no porão, passando a lavanderia, um
quarto com banheiro e, ao lado, uma cozinha compacta. Pode morar lá, não
cobraremos aluguel do espaço, nem descontaremos do salário. Claro, em troca
você nos atende sempre que for necessário, e se quiser passar os finais de
semana em outro lugar, nos avise uns dias antes.
- Sim, eu topo.
- Você vai precisar comprar os próprios alimentos,
quando quiser fazer uma refeição só para si.
- Sim.
- Seu pagamento vai ser de um salário mínimo e meio,
já com os descontos.
- Muito obrigada. Nunca recebi tanto dinheiro na
vida.
O salário a ser pago para a empregada ainda não tinha
sido conversado entre Flávia e Vítor. Ela achou a oferta generosa demais, e
começou a se questionar se o marido já não a conhecia, se talvez ela fosse mãe
de alguma amante, ou até amante, hipótese última que logo foi descartada:
geralmente suas amantes eram jovens adultas, altas e loiras. Vítor sabia que,
mesmo ganhando muito como CEO, juntando às despesas da esposa, o pagamento
pesaria no final do mês, mas seria de grande valia para jogar na cara de Flávia
quando esta relembrasse a traição: “eu até pago uma empregada para você não
fazer mais os serviços domésticos, sou um bom homem”.
- Por favor, então assine este termo. Aqui consta o
que combinamos, e nas observações acrescentei que você morará conosco, ocupando
umas peças no porão.
Com bastante dificuldade em traçar sua assinatura no
papel, Berenice escreveu seu nome com letras maiúsculas de imprensa, devolvendo
a folha para Vítor.
- Berenice, você poderia começar amanhã? – perguntou
Flávia.
- Sim, posso. Estarei aqui às oito horas da manhã, com
minha mudança.
- Você precisa que alguém busque suas coisas?
- Não precisa, o pouco que tenho cabe no porta-malas
de um taxi. Obrigada.
O casal acompanhou a senhora até a porta da casa e
ficaram vendo-a seguir, a pé, até a parada de ônibus. Ao fecharem a porta, os
rostos até antes simpáticos e receptivos se fecharam. Flávia logo cuspiu seus
pensamentos na cara do marido:
- Na mínima é mãe de alguma amante sua. Pagar tudo
isso para uma pessoa que vai morar nesta casa, comer nossa comida, gastar nossa
luz e água? Só pode ser favor para algum rabo de saia!
- Não, juro que não! Você sabe que nunca mais vou
cometer nenhum deslize. Nunca a vi na vida. Ela respondeu ao anúncio da
internet. Só.
- Não sei se acredito em você...
- Acredite sim! Você é a mulher da minha vida.
O silêncio tomou conta do ambiente. Berenice, no dia
seguinte, já se tornara moradora da casa de Flávia e Vítor, e logo se pôs a
limpar, com atenção aos detalhes, cada canto da grande residência.
Os dias foram passando. Flávia acompanhava de perto
tudo que a empregada fazia, desde o amanhecer, preparando o café da manhã para
o casal, a organização de rotina, refeições, até quando esta descia ao porão
para descansar, à noite. Ambas, sozinhas durante a semana, trocavam poucas
palavras, com as conversas resumidas ao cardápio do dia e tarefas a serem
realizadas. Cada vez que Flávia observava a senhora, imaginava ela sendo a mãe
ou tia de alguma amante de Vítor, e como uma coisa leva a outra, assistia à
reprise do seu marido deitado sobre o corpo da última amante, no sofá do
escritório onde ele trabalhava. Se Flávia soubesse o que presenciaria, nunca
teria nem cogitado fazer uma visita surpresa ao homem na hora do almoço. Mas,
se nunca tivesse feito isso, não descobrira a traição. Sentada no sofá, olhando
para um ponto fixo na lareira, Flávia foi interrompida pelo toque suave da mão
magra de Berenice em seu braço.
- Com licença, a senhora está bem?
- Estou... Estou.
A empregada baixou a cabeça e voltou a tirar o pó dos
móveis. Flávia, se sentindo mentalmente cansada, chamou:
- Berenice, sente naquele sofá ao lado. Quero
conversar com você.
Berenice prontamente atendeu ao pedido, ainda
segurando o espanador com suas mãos tísicas e enrugadas.
- Berenice, você já foi traída?
- Senhora, sim. Meu único companheiro me enganava,
saia com outras mulheres, e fez isso até o fim da vida dele, quando um dos
maridos traídos o matou, no bar perto de casa – respondeu a senhora, com os
olhos mareados.
Flávia voltou a ficar com o olhar fixo, distante, mas
desta vez parado nas mãos da empregada, que apertava e girava lentamente o cabo
do espanador. Sentindo que o assunto trouxe à casa um mal-estar, Berenice pediu
licença e voltou a espanar os móveis. A esposa lembrou-se dos dedos do marido,
submersos na blusa da amante, enquanto trocava carícias e intimidades sobre o
sofá da empresa. E mesclava suas memórias com as mãos que lhe causavam repulsa:
as de Berenice. Para Flávia, as da senhora eram típicas de quem nunca se
valorizou na vida, devotada a limpar a sujeira dos outros. E que, talvez,
tivessem segurado no colo uma loira jovem e linda que, naquele momento, estaria
aos beijos com Vítor.
Duas semanas se passaram. Flávia se fechara mais e
mais dentro de si, misturando fatos e suposições. Numa noite, enquanto o casal
esperava a empregada servir um ensopado, Vítor recebeu uma ligação que o fez
mudar de cor, silenciando rapidamente o telefone.
- Quem estava te ligando?
- Não reconheci o número. Certo que era
telemarketing.
- Mas neste horário?
- Amor, já falei que mudei.
Berenice aproximou-se da mesa e foi descendo a panela
com a sopa quente entre o casal, mas quando esta estava quase tocando a
superfície, as mãos da empregada perderam a força, e com o impacto do objeto,
respingos voaram sobre os três:
- Que é isso Berenice! Você me queimou! –
gritou Flávia, levantando-se com raiva.
- Eu sinto muito. – desculpou-se Berenice, secando
suas mãos, também atingidas pelo caldo fervendo, no avental.
- Flávia, tenho certeza que ela não fez por querer.
Vou buscar uma pomada para tratar nossas queimaduras – anunciou Vítor.
- Quanta gentileza, Vítor! Primeiro uma ligação
misteriosa, depois ela “perdeu a força”. Que interessante...
- Flávia, quanta besteira!
- Besteira? Você se grudando na loirinha do trabalho é
que foi besteira! Fala a verdade, tá saindo com que colega agora, grande
CEO?
O marido deu as costas para a mulher que esbravejava,
retornando com a pomada e dando um pouquinho do medicamento primeiro para
Berenice, depois para a esposa.
- Vamos voltar a jantar. Berenice, vá descansar.
Flávia nem quis continuar a refeição, e subiu ao
primeiro andar, batendo todas as portas que cruzara. Berenice desceu para o
porão e Vítor jantou sozinho. Antes de dormir, ele foi até o quartinho da
empregada, pedir desculpas pela grosseria da esposa:
- Sinto muito, Berenice. Ela está ainda chateada
comigo.
- Tudo bem, entendo. Obrigada pela gentileza de vir
falar comigo.
- Eu que agradeço pela compreensão. Boa noite.
- Boa noite.
Flávia, escondida no topo da escadaria, só observava Vítor
retornar do porão, na escuridão da casa, e dirigir-se ao quarto. E tudo ia ficando
cada vez mais claro: ela era sim, mãe de uma amante que ainda não sabia quem
era. Aquelas mãos nojentas e inúteis criaram uma linda menina, que se tornou a
mais nova loirinha de seu marido mentiroso.
Planos começaram a surgir na cabeça da mulher. A última semana
mostrou a Vítor e Berenice uma Flávia magicamente colaborativa, simpática e
prestativa. Ela fez questão de ajudar a empregada em diversos momentos,
inclusive riram muito fazendo biscoitos para quando o marido chegasse cansado
do trabalho. No domingo à noite chovia muito, e após uma refeição alegre, com
direito a Berenice ocupar a mesma mesa que os patrões, um tanto embriagado o
marido decide ir dormir.
- Obrigado pela companhia, espero minha linda mulher no quarto o quanto
antes. Berenice, bons sonhos.
- Obrigada, senhor Vítor. Para você também.
Ao perceber que o esposo desaparecera na escadaria, Flávia abraçou
Berenice por trás, falando ao pé do ouvido da senhora:
- Obrigada por estar fazendo parte da nossa vida. – Uma das mãos
de Flávia largou a senhora por um momento, retornando rapidamente com um pano
que foi colocado com força sobre o nariz da empregada.
- Bons sonhos.
No dia seguinte, o marido estranhou que Flávia havia
preparado o café da manhã, e questionou:
- Cadê Berenice?
- Nesta semana eu a deixei viajar para o Mato Grosso,
visitar uns parentes. Ah, desculpa por não ter te falado. - Ela merece né!
Sempre tão querida.
- Merece. Quando Vítor saiu, Flávia desceu até o porão e
abriu o cadeado que prendia Berenice a uma coluna no quartinho.
- Saia daí sua inútil, e limpe a casa.
Berenice, com os olhos inchados de tanto chorar, estava com os pés
presos por correntes, e na extremidade de seus antebraços, faixas apertadas
ocupavam o lugar que outrora era das mãos.
- Sentindo falta das suas mãos? Tadinha! Como vai acariciar
os cabelos loiros de sua jovem filha?
- Dona Flávia, eu não tenho filha.
- Não minta. Ela deve estar agora mesmo debaixo do corpo do
meu marido, deixando-o ofegante.
- Dona Flávia...
Pelos cabelos, a esposa arrastou Berenice até a sala de estar,
colocando- a de quatro diante de um balde cheio de água e desinfetante, e um
pano.
- Esfrega este chão!
- Dona Flávia, estou cada vez mais fraca. Minhas
mãos... – Berenice chorava e gemia de dor. As ataduras não iam mais dando
conta de estancar o sangue da mutilação.
- Você vai limpar, mesmo que com a boca! – Flávia retirou
o pano do balde, e enfiou na boca da empregada, empurrando a cabeça dela contra
o chão.
- Esfregue!
O corpo de Berenice, que sangrou por horas, foi esvaindo-se de
vida e, no meio da sala, ela morreu. Sem demonstrar remorso, a esposa arrastou
o cadáver até o jardim dos fundos, e jogou-o num velho poço artesiano
desativado. Com raiva, limpou todos os vestígios de sangue e aguardou o marido,
no final do dia.
Durante o jantar, Vítor percebeu que a mulher não parava de mexer
na gola da camiseta, puxando-a para frente.
- Amor, você está bem?
- Sim, só acho que esta camiseta está me apertando. Quer saber,
vou trocar por uma com uma gola mais aberta.
- A Berenice está fazendo falta. Você sabe quando ela volta? –
perguntou Vítor.
- Ela não disse quando voltaria.
No quarto do casal, marido e mulher dormiam quando o relógio
marcou meia-noite. Flávia acordou sentindo gosto de desinfetante na boca, e uma
sensação de quem estava tendo o pescoço apertado.
- AAAAAH!
O grito acordou Vítor, que rapidamente acendeu a luz e sentou na
cama:
- O que houve, amor?
- Não sei, sinto algo apertando meu pescoço.
- Você está desde a janta sentindo isso. Deve ser ansiedade ou mera
impressão. Vamos voltar a dormir.
- Talvez seja psicológico mesmo – concordou Flávia.
Uma hora da madrugada, novamente ela acordou em pânico.
- Eu sinto algo apertando meu pescoço.
- Por favor, Flávia! Eu preciso trabalhar amanhã
cedo.
Duas horas da madrugada, Flávia vai saindo do mundo dos
sonhos com a carícia de dedos finos em seu rosto, que aos poucos vão se tornando
arranhões que ardiam. Vítor, novamente acordado por um grito, ligou a luz e viu
o rosto da esposa todo marcado por unhas.
- Meu Deus, Flávia! O que você se fez?
- Eu não fiz nada! Meu rosto arde!
- Você está toda arranhada, inclusive está sangrando um pouco. Pare com
isso, preciso dormir!
A esposa foi até o banheiro do quarto, e ao olhar-se viu
exatamente o que Vítor descrevera: marcas horizontais que escorriam de sua
testa ao pescoço. Imediatamente ela lembrou-se de que havia deixado as mãos de
Berenice no quarto do porão, cômodo que esquecera de limpar. Vítor voltara a
dormir rapidamente.
Sem fazer barulho, ela desceu até o porão e se deparou com o
quarto todo ensanguentado. Sangue agora que estava seco pelo chão, cobertas e
paredes. As mãos da empregada não estavam em lugar nenhum.
- Eu juro que deixei aqui no chão! – a mulher repetia para si
mesma.
Flávia procurou e procurou. Três horas da madrugada. Cansada da busca, a esposa
acabou adormecendo sobre os lençóis embebecidos no sangue de Berenice,
sentindo-se naufragar em seu próprio feito: em sua vitória sobre o marido
traidor e a mãe de sua amante.
Três e meia da madrugada, Flávia foi acordada por dedos magros e
enrugados comprimindo seu pescoço. Quanto mais ela se debatia, mais o ar
parecia esvair-se. Tentando se livrar do sufocamento, ela procurava
desesperadamente os braços inimigos, mas era inútil. Eram somente as mãos: as
mãos de Berenice.