domingo, 14 de março de 2021

Boitatá Moderno

 Aproveite esta releitura da lenda do Boitatá. Você pode assistir a narração feita por Sérgio Pires, da rádio Putzgrila, no link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=HOddnjTmkaY

 

     Jaqueline estava ansiosa para, finalmente, encontrar o rapaz com o qual vinha conversando durante semanas, pela rede social. A chuva intensa dos últimos dias, que alagou inúmeras casas e causara danos em diversos estabelecimentos comerciais, finalmente parecia ter dado uma trégua, apesar da ausência do sol. Desde que a moça chegou à capital, ainda não tinha feito muitos amigos, mas sentia que havia encontrado um amor, uma razão para se sentir viva, antes mesmo de ter com quem confidenciar isso.     Quem diria que uma solicitação de amizade faria o coração bater mais forte. No trabalho, escritório da sede administrativa da madeireira Atlanta, o telefone tocou. Era Micael.
     - Alô!
     - Bom dia minha musa dos olhos brilhantes.
     - Bom dia Mica.
     - Estou te atrapalhando? Você está falando tão baixo...
     - Estou escondida no depósito aqui do escritório – Jaque deu uma risadinha tímida – mas pode falar sim. Estava com saudades de ouvir sua voz.
     - E olha que nos falamos ontem à noite, luz da minha vida.
      - Meu amor!
     - Vamos nos encontrar finalmente esta noite?
     - Claro, não posso mais esperar para te ver pessoalmente.
     - Eu sugiro aquele barzinho que tem no final da rua Hermes, no seu bairro mesmo. Acho o lugar bacana.
     - Ele é um pouco pacato, não tem música ao vivo, nem muitos frequentadores.
     - Mas assim é melhor, podemos conversar com mais tranquilidade. Não concorda?
     - Concordo meu amor. Esta noite às oito horas?
     - Combinado, te encontro lá.
     Jaqueline saiu de fininho de onde estava escondida, para que ninguém descobrisse que havia quebrado a regra de não utilizar o celular durante o expediente. Nunca os minutos passaram tão devagar quanto naquele dia, apesar da demanda por madeira estar alta. Quando finalmente pode ir para casa, apressou-se em tomar banho, colocar sua melhor roupa, maquiar-se e sair para seu tão esperado encontro.
     O coração pulava forte no peito, as pernas tremiam e as mãos suavam. Somente duas mesas estavam ocupadas: uma na parte de dentro do bar, por um casal de meia idade que pareciam tentar engolir seu cansado relacionamento com cervejas, e outra, na calçada, por um rapaz de costas para a rua, vestindo calça jeans preta e camiseta social verde. Seria ele? Será? Era sim.
     Quando Jaqueline estava a poucos passos de Mica, ele virou-se com um sorriso largo:
     - Seus olhos realmente são muito brilhantes.
     - Obrigada.
     - Por favor, sente-se.
    Jaque se sentou bem em frente à Mica, e ambos ficaram se olhando sem dizer nenhuma palavra. A rua estava silenciosa, a noite escura, como se prometesse mais chuva pela frente. Mica a olhava nos olhos, como se quisesse ler sua alma. Após o garçom deixar na mesa a garrafa de cerveja e dois copos, o rapaz quebrou o silêncio:
     - Podemos pedir algo para comer?
     - Sinto muito, estamos sem nada para oferecer além de bebidas.
     O garçom de aspecto cansado voltou para dentro do bar, continuar a limpeza do piso, que ainda estava cheio de lama da tempestade anterior. O casal que ocupava a outra mesa estava indo embora. Só sobrava no lugar Jaqueline e Micael.
     - Não há nada mais sincero que o olhar. Ele não mente, não trai. Foi a primeira coisa que reparei em suas fotografias: seus lindos olhos castanhos.
     - Obrigada.
     - Você está com fome?
     - Um pouco... – Na verdade, por conta da ansiedade, Jaqueline não comera nada o dia inteiro, e estava se sentindo muito fraca.
     - Seu olhar é minha fonte de energia.
     - Não seja exagerado, mas obrigada pelos elogios.
     - É verdade, eu me alimentaria dos seus olhos. Seu olhar cheio de luz, de vida.
     Jaqueline sentia seu corpo amolecer, uma forte sensação de sonolência que não lembrava ter tido após ter tomado cerveja na vida. A cabeça pesava cada vez mais e uma inércia a paralisava.
     Micael levantou da cadeira e aproximou-se dela, que já não conseguia falar ou fazer nenhum movimento. Lentamente ele tirou do bolso um canivete, e cirurgicamente arrancou os olhos da moça, colocando-os num pequeno saco plástico, junto a outros de diferentes datas.
     - Vou guardar com muito carinho essa luz que me alimenta, não se preocupe.
     Sem ser notado pelo garçom, Micael foi desaparecendo, serpenteando pela rua, surgindo como um vulto de luz por debaixo dos postes solitários, sumindo na escuridão.

segunda-feira, 8 de março de 2021

As próximas gerações - dia da mulher

 Este conto diz mais no vácuo entre passado e presente do que na história redigida. Não precisamos repetir o que sofremos, pois é a única forma de se libertar às vezes.



    Quando Viviane nasceu, a família não comemorou muito. Sim, fora uma emoção o mistério da vida acontecendo diante dos olhos do marido, mãe, avó e a parteira. Mas os sorrisos encolheram-se um pouco ao ouvirem a frase:

    - É uma menina.
    Os parentes vinham visitar o casal, com mimos, expectativas e pitacos:
    - Não acredito! Não conseguiu fazer um varão! – exclamava o compadre.
    - E quem vai levar o sobrenome da família adiante? – questionava o avô.
    - Quero ver quando casar, a despesa que vocês vão ter... – comentava a comadre.
    - Vai ter que amarrar os gaviões – ria a sogra.
    E enquanto a menina crescia, a família aumentava. Os varões chegavam: José, Fabrício, Ernesto e Joaquim. Depois deste último, o útero da matriarca teve que ser retirado. Tornara-se, para seus pares, um pouco menos mulher e, para aliviar sua tristeza, cuspia palavras amargas na filha.
    E assim Viviane foi crescendo, e a cada dia aprendendo mais sobre lavar, secar, guardar e cuidar dos irmãos. Estudar? Para quê? Um casamento com um pretendente arranjado era mais que o suficiente para exercer seu papel na sociedade.
    Um dia o casamento lhe bateu a porta, como uma tempestade de verão repentina. Viviane se viu diante da reprise de uma vida que ainda não a pertencia, mas que parecia seu destino. Sabia que sua voz não era audível aos ouvidos da família, que seus sonhos eram guardados com as roupas e que varria para debaixo do tapete suas discordâncias e amarguras. Bom seria ser José, Fabrício, Ernesto e Joaquim, orgulho do pai, participantes dos negócios, que liam e faziam contas e comungavam de risadas folgadas após as refeições.
    Bem que ela quis fugir, enquanto o vestido branco lhe era apresentado, o salão da comunidade decorado e os detalhes organizados. Viviane ficava se imaginando lendo os poucos livros empoeirados na estante, trabalhando como os irmãos, apaixonando-se. Perdida entre pensamentos, quando se deu por conta estava no altar, diante de um homem que mal conhecia para concretizar um destino que não queria. Na hora que o padre perguntou se ela aceitava casar-se com Antônio Ridegatto, ela respondeu...
    - Mãe, que triste a vida da vovó. Ainda que os tempos mudaram. E eles foram felizes?
    - Ela foi uma ótima mãe. Ele foi um bom pai. Mas pouco se falavam e, como você se lembra, o vovô terminou a vida dormindo no quartinho de hóspedes.
    - Eu não me lembro deles conversando muito quando íamos lá nos domingos...
    - Pois é, então se você não quiser que eu escolha seu marido, trate de escolher bem seu namorado.
    - Ai mãe, ninguém mais faz isso.
    E numa risada uníssona, envolvidas num abraço, ambas agradeceram aos esforços de todas as avós, que a passos curtos e perseverantes, construíram os caminhos para as mulheres das próximas gerações.