- Não vou passar um
tempo na casa da minha avó. Ficar ao lado daquela velha, me poupe. Me poupe,
mãe.
-É só por esta tarde, Ana. A
cuidadora precisa se ausentar. Faça isso ou corto sua mesada toda de maio.
-Afff, né. Uma tarde dos meus
quatorze anos jogada no lixo.
A viagem até a casa da senhorinha
foi num clima desagradável. Mãe e filha não trocaram uma palavra sequer.
Rapidamente a adolescente foi deixada no portão da velha casa de madeira e ouviu
o som do motor do carro ficar rapidamente distante, até dissipar-se no ar.
Saco, pensava ela. Preferia ficar em
casa gravando seus vídeos para as redes sociais, com seus relatos da escola,
baladinhas e amigos.
Bateu na porta e logo esta foi
aberta por sua avó Lúcia.
-Entre, minha neta.
-Obrigada.
-A vovó estava revirando alguns
álbuns de fotografia antigos. Você deve pensar que é bem coisa de velho.
A vontade era responder que sim, e
que ela a deixasse ficar em seu celular passando as cinco longas horas em paz.
Mas Ana disse:
-Não é não.
Em silêncio, a senhora folhava
devagar as páginas do poeirento álbum. Ana podia ver fragmentos de pó pelo ar
iluminado por uma fraca luz do teto. Mania de casas antigas serem escuras.
Dentro da caixa mais dois compilados
de imagens repousavam. A adolescente resolveu pegar um e começou a observar. Tantas
imagens estranhas, muitas em preto e branco, outras em cores e definições muito
ultrapassadas.
-Sente-se aqui ao meu lado, Aninha. Venha
olhar comigo.
Um tanto desconfortável, mas ao
mesmo tempo curiosa, ela sentou próxima a avó.
-Querida, atrás de cada fotografia
tem o registro escrito de quem estão nelas, onde e em que momento. É só virar e
ler.
Ana ficou olhando para o rosto de
Lúcia e não fez nada além de dar um sorriso. “Simples, por que essa chata não
faz isso? O que ela quer?” Pensava...
Quem escreveu foi sua mãe, quando
tinha um pouco mais que a sua idade. Eu falei pra ela. Eu não sei ler.
“Minha avó não sabe ler? Todos sabem
ler? E então, pra que uma estante de livros na sala?” Com os olhos úmidos, a
senhorinha olhou nos olhos da neta e disse:
-Eu só trabalhei, desde pequena.
Trabalhei muito e muito para que sua mãe conseguisse voar mais alto que eu no
interior. Eu sempre quis aprender a ler, mas hoje tenho até vergonha de revelar
isso. Só sei escrever meu nome. Vou contar um segredo: algumas noites abro um
desses livros e fico passando meus dedos sobre as letras, só para imaginar
todos os universos de cada linha. Não consigo nem pegar um ônibus, e desde que me
mudei para a cidade, dependo de alguém pra me guiar. Olha esta foto: é sua mãe
bebê nos braços... Não lembro mais quem era ele...
-Vó – falou a neta virando a
fotografia – aqui diz que é o tio Renato no pátio da casa de Antonela.
-Antonela! A vizinha da tua bisavó.
Verdade.
-Esse bebê também é minha mãe? Que
engraçada, toda suja de terra.
-Sim, é ela. Mas eu não lembro
onde...
-Deixa eu ler aqui... Na praça da
cidade. Que diferente!
-Sim, muito. Aquelas plantas nem
existem mais.
....
E aquela tarde foi o período que
passou mais rápido dos últimos anos. Neta e avó iluminaram o ambiente enquanto
ambas liam, cada uma a sua maneira, o passado, o presente e um futuro de mais e
mais luz.
Seis da tarde, ou dezoito horas, uma
buzina toca em frente a velha casa de madeira. Era a mãe para buscar Ana.
Mas, antes de ir embora, a avó
segurou a mão de sua neta e mostrou-lhe um maço de folhas amareladas.
-Essas são as cartas de amor que seu
avô escrevia para mim. Todas as quartas-feiras, Beatriz, a moça que fica aqui
comigo, lê uma para mim. Eu não aguento mais a dor de só reconhecer um papel
riscado em cada página. Leve-as e dê o destino que quiser.
-Vó..Olhe para mim...Todas as
quartas-feiras, como hoje, eu vou vir aqui e vou lhe ensinar a ler.
Ambas se abraçaram forte e a partir
daquele momento, todas as quartas-feiras, ambas aprendem e ensinam, uma a outra,
a lerem. Uma as palavras, frases e parágrafos. Outra as pessoas e a própria
vida.
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