quarta-feira, 25 de março de 2020

O ônibus 246

Oie, nesse tempo de quarentena o que nos resta é voltarmos nossos pensamentos para nós mesmos, buscando cuidar. Cuidar acho que é o verbo mais pertinente agora. Ter cuidado por si, pelos que amamos e pelos que são amados por outros. Este conto foi premiado em 2017 no Concurso Regional Oscar Bertholdo. Um olhar diferente, um gesto solidário, pode mudar vidas! Boa leitura...


O ÔNIBUS 246

Querido Roberto, depois da nossa conversa ontem à noite, enquanto esperávamos nossos táxis para que cada um fosse repousar em seu lar, fiquei realmente pensando se eu já tivera vivenciado algo parecido. Fiquei muito introspectivo com os relatos da Bea e da Marcinha, nunca imaginei que elas teriam passado por algo assim. Veja só, nunca conheceremos as pessoas em suas totalidades. Acho que de certa forma isso é o que faz o ser humano tão abstruso: sua complexidade que antepara padrões científicos.
Vamos ao meu relato. Durante dez anos da minha vida peguei, todas as manhãs, o ônibus para o centro da cidade, número 246, que passava na parada às oito e dez. De segunda a sexta, quase todos os dias (exceto quando estive doente) era meu transporte até o local de trabalho.
Uma década é tempo suficiente para decorar o trajeto, prever o número de passageiros, memorizar rostos e trajes, saber quais assentos são mais ou menos procurados... Inclusive conhecer um pouco dessas pessoas que, como eu, possuíam rotinas que envolviam o 246.
O caminho, que no começo era atraente, em alguns meses tornou-se convidativo ao tédio e a mesmice. Embarcar naquele mesmo horário todos os dias, algo tão mecânico quanto respirar. Minha maior alegria, lá pelas tantas, era ter sentado ao meu lado, assim como eu, alguém que não quisesse interagir, e me deixasse cochilar em paz. Eram longos os trinta minutos sentado naquele transporte redundante.
Quando não conseguia cochilar, ficava ouvindo as conversas dos passageiros ao meu redor. Queixas sobre dinheiro, trabalho, clientes, estudos, família e afins. Inícios e términos de relacionamentos, nascimentos e mortes. E muitas, mas muitas fofocas sobre pessoas que talvez nunca conhecerei. Mas isso não soava relevante de fato. Assim como uma televisão ligada para espantar o apavorante silêncio de uma casa vazia, logo me esquecia dos diálogos e lá seguia minha jornada de oito horas diárias.
Sim, se você acha que eu não era alguém entusiasmado com a vida, e um tanto depressivo, esse realmente era eu. Tudo parecia pleonástico e extremamente tedioso. O símbolo desse meu pensamento era iniciar o dia no 246. Talvez por isso, você pode pensar, que nesses dez anos foi o que mais me marcou. Porém, preciso refutar sua hipótese, pois ser um símbolo negativo da repetição não foi o que fez esse ônibus ser tão importante para mim. Vou relatar e saciar sua curiosidade como quem oferece um copo de água a um peregrino sedento.
Era a última semana de trabalho na empresa. Com a crise, nossa filial seria fechada, e todos nós fomos demitidos. Esse recomeçar forçado me deixava ansioso. Novamente elaborar currículos, procurar agência de empregos, entrevistas, desafios.
Foi na quarta-feira daquela semana. Novamente voltei a observar o caminho percorrido pelo ônibus 246. Pela janela, revivia meus primeiros momentos naquele percurso. Observando, percebi que já não tinha o mesmo olhar de outrora. Por mais que a rotina ocupasse meu corpo, dentro de mim muita coisa mudou. Fechar um ciclo também fez com que minha forma de assimilar a vida se transformasse.
O movimento de veículos era intenso, e deslocávamos vagarosamente. Olhando pela janela, foi então que vi uma cena que me transformou por dentro. Na beira da calçada, próximo a um muro de uma simples construção, estava um menino sentado, segurando um violão sem cordas, fingindo que tocava as mais intimistas composições. Ao seu lado, um cachorro dormia ao som da serenada silenciosa.
O menino dedilhava nota atrás de nota com suas pequenas mãos, imerso na harmonia de olhos fechados. O cachorro, ao final de cada execução, erguia-se e abanava o rabo ao receber um afago na cabeça. Atrás desse ‘palco’, homens vigiavam a entrada do morro, como faziam todos os dias. Alguns pequenos garotos estavam junto ao grupo, e um deles olhava com tamanho interesse um objeto metálico na cintura do homem que estava com regata vermelha.
Esse rapaz parecia ser a pessoa mais influente do grupo, e acenou para os demais que o menino com seu instrumento era louco; alguém que deveria ser deixado de lado. Os demais riram, e logo voltaram seu olhar para a rua íngreme.
O trânsito voltou a fluir. Silenciosamente eu aplaudi, muitas e muitas vezes e de pé o pequeno músico. Mergulhei naquele concerto de tal forma que assim que encerrei meus compromissos contratuais resolvi plantas notas musicais por onde eu pudesse. Retirei o velho violão do seu sono e até hoje dou aulas de música para crianças carentes.
Até hoje quando eu penso em desistir da minha atual profissão, lembro do homem de vermelho e o menino da sinfonia mais imponente que já ouvi. Se cada música que propago nessa Terra tirar um pequeno cidadão dos senhores rubros, eu terei sido o homem mais feliz que já existiu.
Querido Roberto, eu sei perfeitamente que você compreende minhas palavras, e deve imaginar o quando me emociono em compartilhá-las com você. Deixo um forte abraço pra sua esposa Nanda e a pequena Melissa. Quando a Bea e a Marcinha falaram das dificuldades financeiras e afetivas que passaram, não pude deixar de lembrar essa história. A tão minha quanto sua história.
Observação: no seu próximo recital aqui na capital, tenha certeza que estarei te aplaudindo, de forma muito real e concreta, na primeira fila do teatro. Obrigado por ter me ajudado a ser quem hoje sou, e acreditar que podemos ser heróis nas pequenas atitudes de cada dia.
Do seu eterno professor e amigo, Joander.

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