O ÔNIBUS 246
Querido Roberto, depois da nossa
conversa ontem à noite, enquanto esperávamos nossos táxis para que cada um
fosse repousar em seu lar, fiquei realmente pensando se eu já tivera vivenciado
algo parecido. Fiquei muito introspectivo com os relatos da Bea e da Marcinha,
nunca imaginei que elas teriam passado por algo assim. Veja só, nunca
conheceremos as pessoas em suas totalidades. Acho que de certa forma isso é o
que faz o ser humano tão abstruso: sua complexidade que antepara padrões
científicos.
Vamos ao meu relato. Durante dez anos da
minha vida peguei, todas as manhãs, o ônibus para o centro da cidade, número
246, que passava na parada às oito e dez. De segunda a sexta, quase todos os
dias (exceto quando estive doente) era meu transporte até o local de trabalho.
Uma década é tempo suficiente para
decorar o trajeto, prever o número de passageiros, memorizar rostos e trajes,
saber quais assentos são mais ou menos procurados... Inclusive conhecer um pouco
dessas pessoas que, como eu, possuíam rotinas que envolviam o 246.
O caminho, que no começo era atraente,
em alguns meses tornou-se convidativo ao tédio e a mesmice. Embarcar naquele
mesmo horário todos os dias, algo tão mecânico quanto respirar. Minha maior
alegria, lá pelas tantas, era ter sentado ao meu lado, assim como eu, alguém
que não quisesse interagir, e me deixasse cochilar em paz. Eram longos os
trinta minutos sentado naquele transporte redundante.
Quando não conseguia cochilar, ficava
ouvindo as conversas dos passageiros ao meu redor. Queixas sobre dinheiro,
trabalho, clientes, estudos, família e afins. Inícios e términos de
relacionamentos, nascimentos e mortes. E muitas, mas muitas fofocas sobre
pessoas que talvez nunca conhecerei. Mas isso não soava relevante de fato.
Assim como uma televisão ligada para espantar o apavorante silêncio de uma casa
vazia, logo me esquecia dos diálogos e lá seguia minha jornada de oito horas
diárias.
Sim, se você acha que eu não era alguém
entusiasmado com a vida, e um tanto depressivo, esse realmente era eu. Tudo
parecia pleonástico e extremamente tedioso. O símbolo desse meu pensamento era
iniciar o dia no 246. Talvez por isso, você pode pensar, que nesses dez anos
foi o que mais me marcou. Porém, preciso refutar sua hipótese, pois ser um
símbolo negativo da repetição não foi o que fez esse ônibus ser tão importante
para mim. Vou relatar e saciar sua curiosidade como quem oferece um copo de
água a um peregrino sedento.
Era a última semana de trabalho na empresa.
Com a crise, nossa filial seria fechada, e todos nós fomos demitidos. Esse
recomeçar forçado me deixava ansioso. Novamente elaborar currículos, procurar
agência de empregos, entrevistas, desafios.
Foi
na quarta-feira daquela semana. Novamente voltei a observar o caminho
percorrido pelo ônibus 246. Pela janela, revivia meus primeiros momentos
naquele percurso. Observando, percebi que já não tinha o mesmo olhar de
outrora. Por mais que a rotina ocupasse meu corpo, dentro de mim muita coisa
mudou. Fechar um ciclo também fez com que minha forma de assimilar a vida se
transformasse.
O movimento de veículos era intenso, e
deslocávamos vagarosamente. Olhando pela janela, foi então que vi uma cena que
me transformou por dentro. Na beira da calçada, próximo a um muro de uma
simples construção, estava um menino sentado, segurando um violão sem cordas,
fingindo que tocava as mais intimistas composições. Ao seu lado, um cachorro
dormia ao som da serenada silenciosa.
O menino dedilhava nota atrás de nota
com suas pequenas mãos, imerso na harmonia de olhos fechados. O cachorro, ao
final de cada execução, erguia-se e abanava o rabo ao receber um afago na
cabeça. Atrás desse ‘palco’, homens vigiavam a entrada do morro, como faziam
todos os dias. Alguns pequenos garotos estavam junto ao grupo, e um deles
olhava com tamanho interesse um objeto metálico na cintura do homem que estava
com regata vermelha.
Esse
rapaz parecia ser a pessoa mais influente do grupo, e acenou para os demais que
o menino com seu instrumento era louco; alguém que deveria ser deixado de lado.
Os demais riram, e logo voltaram seu olhar para a rua íngreme.
O trânsito voltou a fluir.
Silenciosamente eu aplaudi, muitas e muitas vezes e de pé o pequeno músico.
Mergulhei naquele concerto de tal forma que assim que encerrei meus
compromissos contratuais resolvi plantas notas musicais por onde eu pudesse.
Retirei o velho violão do seu sono e até hoje dou aulas de música para crianças
carentes.
Até hoje quando eu penso em desistir da
minha atual profissão, lembro do homem de vermelho e o menino da sinfonia mais
imponente que já ouvi. Se cada música que propago nessa Terra tirar um pequeno
cidadão dos senhores rubros, eu terei sido o homem mais feliz que já existiu.
Querido Roberto, eu sei perfeitamente
que você compreende minhas palavras, e deve imaginar o quando me emociono em
compartilhá-las com você. Deixo um forte abraço pra sua esposa Nanda e a
pequena Melissa. Quando a Bea e a Marcinha falaram das dificuldades financeiras
e afetivas que passaram, não pude deixar de lembrar essa história. A tão minha
quanto sua história.
Observação: no seu próximo recital aqui
na capital, tenha certeza que estarei te aplaudindo, de forma muito real e
concreta, na primeira fila do teatro. Obrigado por ter me ajudado a ser quem
hoje sou, e acreditar que podemos ser heróis nas pequenas atitudes de cada dia.
Do seu eterno professor e amigo, Joander.
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