sábado, 28 de março de 2020

ÓBVIO

Acabou de sair da minha mente. Sobre amor... Mas não é óbvio....





      Como o ônibus demora para chegar…
     -Que horas são?
     -Deixe eu ver…
     Coloco a mão em meu bolso, tento pegar meu celular para ver a hora. Meu bolso é apertado, do lado direito (sou destro). Apertado como o que sinto no peito. A mão imerjo no jeans da mesma forma que invado a pele escondida pela camiseta de botões, branca, de Lavínia depois do expediente. E ela sorri, olhando em meus olhos. Mas está difícil de puxar meu eletrônico. No fundo não quero ver que está perto da hora de chegar o ônibus. Não era para ser assim.
      -Mandou fazer o celular?
     -Já vai. Que horas que o ônibus parte?
     -Dezoito e dez.
     Dezoito e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de Janeiro inteiro comemorando o Carnaval e nós dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos do trabalho o dia inteiro, mesclando com comentários carnavalescos.
     -Dérick, sabia que eu torço pra Beija-Flor?
Você é delicada e linda como um pequeno beija-flor, ah se soubesse como amo seus cabelos ruivos crespos, na altura dos ombros. Você tem um sorriso iluminado e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu vejo você andando pelo corredor da empresa, te admiro sentando ao meu lado e colocando sua maçã delicadamente ao lado da tela do computador. Coloca seus fones e aproxima o pequeno microfone de sua boca. Vejo a nós dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos lábios, que salgam nossa saliva, emergimos buscando o mesmo oxigênio. O céu está escuro, chove, ninguém nos vê.
     -Dérick, hello? Você torce pra quem?
     -Salgueiro.
     A árvore símbolo da imortalidade na China, acho que não faz flor pra você, meu beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada olhar.
     -Ninguém liga pra reclamar de rações numa segunda de Carnaval. Que empreguinho de merda temos. - Disse Lavínia realmente irritada.
     -Melhor que nada.
     -Sabe, acho que deveríamos montar nosso próprio negócio, o que você gosta de fazer?
     -Cozinhar. Me amarro em cozinhar.
    -Hum, não conhecia esse seu dom. Eu também gosto de cozinhar, mas sou péssima com sobremesas. Quem sabe termos um foodtruck de cachorro-quente? Deve ser fácil.
     -Deve ser. Vamos conversando sobre isso.
    Continuamos falando sobre diferentes opções de cachorros-quentes, molhos, acompanhamentos, condimentos até o final do expediente. Rimos muito. Temos o mesmo canino torto do lado esquerdo, e eu acho isso muito real, concreto.
    Às cinco e meia nosso chefe chegou para saber como foi o dia, bêbado acompanhado por uma moça que ficou no corredor vomitando junto ao capacho na entrada. Mal Lavínia começou a falar, ele gritou “tá bom, saiam pra eu trancar essa senzala”.
     Descemos as escada, três lances, sem sabermos o que falar, mas na calçada trocamos adjetivos como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção” em diante.
     Naquele dia esperei ela pegar o ônibus para casa. Ele chegou mas a gente não embarcou. Não.
     Fomos ver o pôr do sol na praia do Flamengo, próxima ao escritório.
      Sentado na areia, vimos todas as pessoas ao nosso redor no ritmo da festa. Turistas lotavam a areia, mas conseguimos um pequeno lugar para sentarmos. Eu, em pensamento, mergulhava com ela no mar a minha frente. Ela se molhava e suas roupas ficavam transparentes. E agarrávamos. Eu podia sentir a pressão de cada dedo dela nas minhas costas.
     -Por que o que é óbvio não é fácil de ser dito?
     -Lavínia, acho que temos medo que aquilo que pareça óbvio pra nós seja um enigma para o outro.
     -Dérick, eu gosto de enigmas.
     -É.
     Um vendedor passa por nós oferecendo água, cerveja ou guaraná. Compramos duas cervejas e conversamos, bebendo um pouco mais.
     -Um foodtruck Dérick. E nunca mais teremos que atender a reclamações sobre ração de cachorro.
     -E nem aturar um chefe bêbado gritando conosco.
     Rimos. Nos olhamos. Ela larga o ar bem devagar e fecha os olhos, depois volta sua cabeça para o oceano e contempla. Eu a contemplo e também volto meu olhar para o oceano. Para nós no oceano.
     -Sabe, Lavínia, sempre quis ter uma namorada que topasse protagonizar cenas de amor no mar.
     -Hum, depravado. Eu já fiz isso.
     Não falo nada, mas, de certa forma, eu também.
   -Somos seres óbvios demais, Dérick. Nos conhecemos e sabemos tanto sobre nós, mas não conseguimos trazer de dentro para fora. Metade de nós permanecerá sempre presa dentro da gente. E sabe o que nos mantém encarcerados na gente mesmo? Medo e os outros. Não somos quem realmente somos porque a cela é feita de bocas e olhos dos outros.
     -Você é muito inteligente, Lavínia.
     -Obrigada. Eu nunca protagonizei cenas de amor no mar...
     -Dezoito horas. Agora são dezoito horas.
    Lavínia está cheia de malas, sua viagem não parece ter um retorno e eu tenho muito medo de perguntar. Muito, porque a gente teme ouvir a verdade às vezes, em especial quando você já quase tem certeza qual é. Beija-flor, uma ave de voo rápido e ágil, não pode se prender a uma única flor. Ele semeia, fertiliza, mas vai embora. Eu queria ter pego a mão de Lavínia na beira da praia, e queria ter imerso minha mão sem sua blusa branca de botões naquele dia de Carnaval. Mas era óbvio, e esse foi um problema.
     Não conseguimos falar nada um com o outro naquela rodoviária cheia de gente. Ela olha fixamente para a passagem. Não está sorrindo. Eu não consigo ter a força das ondas do mar que aquela boca desperta em mim ao falar no microfone, comigo, morder sua maçã de forma irregular ou afundar comigo no mar do Flamengo. Por que é tão óbvio? Por que é difícil?
     No mar, agarrados, eu seguro sua cintura e sua nuca, prendo seus lábios nos meus e chove em nós. Mas não a deixo ir. Não a deixo ir. Não quero que ela vá.
     -Chegou o ônibus. Obrigada por esses anos de amizade. Obrigada.
     -Lavínia, eu que agradeço.
     E a gente só se olha, com o canto da boca descendo, a mão suando, a perna mole e eu me vendo naufragar sozinho nas ondas violentas do mar. Ela segue, sobre as águas e some ao adentrar o ônibus.  Ela senta próximo à janela, me olha e vejo que seus olhos se enchem de lágrimas. Lá vai ela de volta para o interior de Goiás, com a família que precisa dela.
     Lavínia ergue uma folha de papel com duas palavras.
     “Era óbvio.”

quarta-feira, 25 de março de 2020

O ônibus 246

Oie, nesse tempo de quarentena o que nos resta é voltarmos nossos pensamentos para nós mesmos, buscando cuidar. Cuidar acho que é o verbo mais pertinente agora. Ter cuidado por si, pelos que amamos e pelos que são amados por outros. Este conto foi premiado em 2017 no Concurso Regional Oscar Bertholdo. Um olhar diferente, um gesto solidário, pode mudar vidas! Boa leitura...


O ÔNIBUS 246

Querido Roberto, depois da nossa conversa ontem à noite, enquanto esperávamos nossos táxis para que cada um fosse repousar em seu lar, fiquei realmente pensando se eu já tivera vivenciado algo parecido. Fiquei muito introspectivo com os relatos da Bea e da Marcinha, nunca imaginei que elas teriam passado por algo assim. Veja só, nunca conheceremos as pessoas em suas totalidades. Acho que de certa forma isso é o que faz o ser humano tão abstruso: sua complexidade que antepara padrões científicos.
Vamos ao meu relato. Durante dez anos da minha vida peguei, todas as manhãs, o ônibus para o centro da cidade, número 246, que passava na parada às oito e dez. De segunda a sexta, quase todos os dias (exceto quando estive doente) era meu transporte até o local de trabalho.
Uma década é tempo suficiente para decorar o trajeto, prever o número de passageiros, memorizar rostos e trajes, saber quais assentos são mais ou menos procurados... Inclusive conhecer um pouco dessas pessoas que, como eu, possuíam rotinas que envolviam o 246.
O caminho, que no começo era atraente, em alguns meses tornou-se convidativo ao tédio e a mesmice. Embarcar naquele mesmo horário todos os dias, algo tão mecânico quanto respirar. Minha maior alegria, lá pelas tantas, era ter sentado ao meu lado, assim como eu, alguém que não quisesse interagir, e me deixasse cochilar em paz. Eram longos os trinta minutos sentado naquele transporte redundante.
Quando não conseguia cochilar, ficava ouvindo as conversas dos passageiros ao meu redor. Queixas sobre dinheiro, trabalho, clientes, estudos, família e afins. Inícios e términos de relacionamentos, nascimentos e mortes. E muitas, mas muitas fofocas sobre pessoas que talvez nunca conhecerei. Mas isso não soava relevante de fato. Assim como uma televisão ligada para espantar o apavorante silêncio de uma casa vazia, logo me esquecia dos diálogos e lá seguia minha jornada de oito horas diárias.
Sim, se você acha que eu não era alguém entusiasmado com a vida, e um tanto depressivo, esse realmente era eu. Tudo parecia pleonástico e extremamente tedioso. O símbolo desse meu pensamento era iniciar o dia no 246. Talvez por isso, você pode pensar, que nesses dez anos foi o que mais me marcou. Porém, preciso refutar sua hipótese, pois ser um símbolo negativo da repetição não foi o que fez esse ônibus ser tão importante para mim. Vou relatar e saciar sua curiosidade como quem oferece um copo de água a um peregrino sedento.
Era a última semana de trabalho na empresa. Com a crise, nossa filial seria fechada, e todos nós fomos demitidos. Esse recomeçar forçado me deixava ansioso. Novamente elaborar currículos, procurar agência de empregos, entrevistas, desafios.
Foi na quarta-feira daquela semana. Novamente voltei a observar o caminho percorrido pelo ônibus 246. Pela janela, revivia meus primeiros momentos naquele percurso. Observando, percebi que já não tinha o mesmo olhar de outrora. Por mais que a rotina ocupasse meu corpo, dentro de mim muita coisa mudou. Fechar um ciclo também fez com que minha forma de assimilar a vida se transformasse.
O movimento de veículos era intenso, e deslocávamos vagarosamente. Olhando pela janela, foi então que vi uma cena que me transformou por dentro. Na beira da calçada, próximo a um muro de uma simples construção, estava um menino sentado, segurando um violão sem cordas, fingindo que tocava as mais intimistas composições. Ao seu lado, um cachorro dormia ao som da serenada silenciosa.
O menino dedilhava nota atrás de nota com suas pequenas mãos, imerso na harmonia de olhos fechados. O cachorro, ao final de cada execução, erguia-se e abanava o rabo ao receber um afago na cabeça. Atrás desse ‘palco’, homens vigiavam a entrada do morro, como faziam todos os dias. Alguns pequenos garotos estavam junto ao grupo, e um deles olhava com tamanho interesse um objeto metálico na cintura do homem que estava com regata vermelha.
Esse rapaz parecia ser a pessoa mais influente do grupo, e acenou para os demais que o menino com seu instrumento era louco; alguém que deveria ser deixado de lado. Os demais riram, e logo voltaram seu olhar para a rua íngreme.
O trânsito voltou a fluir. Silenciosamente eu aplaudi, muitas e muitas vezes e de pé o pequeno músico. Mergulhei naquele concerto de tal forma que assim que encerrei meus compromissos contratuais resolvi plantas notas musicais por onde eu pudesse. Retirei o velho violão do seu sono e até hoje dou aulas de música para crianças carentes.
Até hoje quando eu penso em desistir da minha atual profissão, lembro do homem de vermelho e o menino da sinfonia mais imponente que já ouvi. Se cada música que propago nessa Terra tirar um pequeno cidadão dos senhores rubros, eu terei sido o homem mais feliz que já existiu.
Querido Roberto, eu sei perfeitamente que você compreende minhas palavras, e deve imaginar o quando me emociono em compartilhá-las com você. Deixo um forte abraço pra sua esposa Nanda e a pequena Melissa. Quando a Bea e a Marcinha falaram das dificuldades financeiras e afetivas que passaram, não pude deixar de lembrar essa história. A tão minha quanto sua história.
Observação: no seu próximo recital aqui na capital, tenha certeza que estarei te aplaudindo, de forma muito real e concreta, na primeira fila do teatro. Obrigado por ter me ajudado a ser quem hoje sou, e acreditar que podemos ser heróis nas pequenas atitudes de cada dia.
Do seu eterno professor e amigo, Joander.