Como
o ônibus demora para chegar…
-Que
horas são?
-Deixe
eu ver…
Coloco
a mão em meu bolso, tento pegar meu celular para ver a hora. Meu
bolso é apertado, do lado direito (sou destro). Apertado como o que
sinto no peito. A mão imerjo no jeans da mesma forma que invado a
pele escondida pela camiseta de botões, branca, de Lavínia depois
do expediente. E ela sorri, olhando em meus olhos. Mas está difícil
de puxar meu eletrônico. No fundo não quero ver que está perto da
hora de chegar o ônibus. Não era para ser assim.
-Mandou
fazer o celular?
-Já
vai. Que horas que o ônibus parte?
-Dezoito
e dez.
Dezoito
e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de Janeiro inteiro comemorando o
Carnaval e nós dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos
reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos do trabalho o dia
inteiro, mesclando com comentários carnavalescos.
-Dérick,
sabia que eu torço pra Beija-Flor?
Você
é delicada e linda como um pequeno beija-flor, ah se soubesse como
amo seus cabelos ruivos crespos, na altura dos ombros. Você tem um
sorriso iluminado e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu vejo
você andando pelo corredor da empresa, te admiro sentando ao meu
lado e colocando sua maçã delicadamente ao lado da tela do
computador. Coloca seus fones e aproxima o pequeno microfone de sua
boca. Vejo a nós dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na
praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos lábios, que salgam nossa
saliva, emergimos buscando o mesmo oxigênio. O céu está escuro,
chove, ninguém nos vê.
-Dérick,
hello? Você torce pra quem?
-Salgueiro.
A
árvore símbolo da imortalidade na China, acho que não faz flor pra
você, meu beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada olhar.
-Ninguém
liga pra reclamar de rações numa segunda de Carnaval. Que
empreguinho de merda temos. - Disse Lavínia realmente irritada.
-Melhor
que nada.
-Sabe,
acho que deveríamos montar nosso próprio negócio, o que você
gosta de fazer?
-Cozinhar. Me amarro em cozinhar.
-Hum,
não conhecia esse seu dom. Eu também gosto de cozinhar, mas sou
péssima com sobremesas. Quem sabe termos um foodtruck de
cachorro-quente? Deve ser fácil.
-Deve
ser. Vamos conversando sobre isso.
Continuamos
falando sobre diferentes opções de cachorros-quentes, molhos,
acompanhamentos, condimentos até o final do expediente. Rimos muito.
Temos o mesmo canino torto do lado esquerdo, e eu acho isso muito
real, concreto.
Às
cinco e meia nosso chefe chegou para saber como foi o dia, bêbado
acompanhado por uma moça que ficou no corredor vomitando junto ao
capacho na entrada. Mal Lavínia começou a falar, ele gritou “tá
bom, saiam pra eu trancar essa senzala”.
Descemos
as escada, três lances, sem sabermos o que falar, mas na calçada
trocamos adjetivos como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção”
em diante.
Naquele
dia esperei ela pegar o ônibus para casa. Ele chegou mas a gente não
embarcou. Não.
Fomos
ver o pôr do sol na praia do Flamengo, próxima ao escritório.
Sentado
na areia, vimos todas as pessoas ao nosso redor no ritmo da festa.
Turistas lotavam a areia, mas conseguimos um pequeno lugar para
sentarmos. Eu, em pensamento, mergulhava com ela no mar a minha
frente. Ela se molhava e suas roupas ficavam transparentes. E
agarrávamos. Eu podia sentir a pressão de cada dedo dela nas minhas
costas.
-Por
que o que é óbvio não é fácil de ser dito?
-Lavínia,
acho que temos medo que aquilo que pareça óbvio pra nós seja um
enigma para o outro.
-Dérick,
eu gosto de enigmas.
-É.
Um
vendedor passa por nós oferecendo água, cerveja ou guaraná.
Compramos duas cervejas e conversamos, bebendo um pouco mais.
-Um
foodtruck Dérick. E nunca mais teremos que atender a reclamações
sobre ração de cachorro.
-E
nem aturar um chefe bêbado gritando conosco.
Rimos.
Nos olhamos. Ela larga o ar bem devagar e fecha os olhos, depois
volta sua cabeça para o oceano e contempla. Eu a contemplo e também
volto meu olhar para o oceano. Para nós no oceano.
-Sabe,
Lavínia, sempre quis ter uma namorada que topasse protagonizar cenas
de amor no mar.
-Hum,
depravado. Eu já fiz isso.
Não
falo nada, mas, de certa forma, eu também.
-Somos
seres óbvios demais, Dérick. Nos conhecemos e sabemos tanto sobre
nós, mas não conseguimos trazer de dentro para fora. Metade de nós
permanecerá sempre presa dentro da gente. E sabe o que nos mantém
encarcerados na gente mesmo? Medo e os outros. Não somos quem
realmente somos porque a cela é feita de bocas e olhos dos outros.
-Você
é muito inteligente, Lavínia.
-Obrigada.
Eu nunca protagonizei cenas de amor no mar...
-Dezoito
horas. Agora são dezoito horas.
Lavínia
está cheia de malas, sua viagem não parece ter um retorno e eu
tenho muito medo de perguntar. Muito, porque a gente teme ouvir a
verdade às vezes, em especial quando você já quase tem certeza
qual é. Beija-flor, uma ave de voo rápido e ágil, não pode se
prender a uma única flor. Ele semeia, fertiliza, mas vai embora. Eu
queria ter pego a mão de Lavínia na beira da praia, e queria ter
imerso minha mão sem sua blusa branca de botões naquele dia de
Carnaval. Mas era óbvio, e esse foi um problema.
Não
conseguimos falar nada um com o outro naquela rodoviária cheia de
gente. Ela olha fixamente para a passagem. Não está sorrindo. Eu
não consigo ter a força das ondas do mar que aquela boca desperta
em mim ao falar no microfone, comigo, morder sua maçã de forma
irregular ou afundar comigo no mar do Flamengo. Por que é tão
óbvio? Por que é difícil?
No
mar, agarrados, eu seguro sua cintura e sua nuca, prendo seus lábios
nos meus e chove em nós. Mas não a deixo ir. Não a deixo ir. Não
quero que ela vá.
-Chegou
o ônibus. Obrigada por esses anos de amizade. Obrigada.
-Lavínia,
eu que agradeço.
E a
gente só se olha, com o canto da boca descendo, a mão suando, a
perna mole e eu me vendo naufragar sozinho nas ondas violentas do
mar. Ela segue, sobre as águas e some ao adentrar o ônibus. Ela
senta próximo à janela, me olha e vejo que seus olhos se enchem de
lágrimas. Lá vai ela de volta para o interior de Goiás, com a
família que precisa dela.
Lavínia
ergue uma folha de papel com duas palavras.
“Era
óbvio.”