segunda-feira, 29 de junho de 2020

Um brinde à solidão

Olá, conto sobre empoderamento feminino? Tenho sim! Ele é um dos contos da coletânea ESCRITOS PREMIADOS que mais admiro.
                 
            E ela permanecera sentada no sofá, respirando profundamente, brindando com a solidão.
            Cedo, antes do despertar do sol, Sofia, entre tantas escolhas, optou por si mesma. Naquela manhã tocou sua pele, marcada, com um afeto desconhecido, ímpar. Viu seus olhos no espelho e notou: eram castanhos, da cor de seus cabelos, da cor que vira que eram em sua infância. Ah, aquele Natal em que ganhara de sua mãe uma boneca, a qual nomeara de princesa Victória, que morava em um imenso castelo e que era cortejada por um príncipe, que a defenderia de todos os males, que daria a vida por um simples beijo, que, e eram tantos os quês, que alimentaram a sua pureza infantil.
            O sol entrava pela janela do quarto, devagar, aquecendo aquele ambiente tão frio, apertado demais para dois, assustadoramente imenso para um. Ainda contemplando sua imagem refletida, aos poucos o corpo de um ser humano ia tomando forma. O contorno feminino, por tantas vezes negligenciado, ia surgindo como uma imagem sacra. Braços, pernas, ombros, face. Sofia respirou profundamente e admirou o movimento de seu diafragma. Soltou o ar, suavemente, devagar como uma pluma solta a brisa de verão.
            Linha após linha ia delineando-se feições jovens, mas marcadas pelo chicote impiedoso do convívio com a loucura. Agora, já não era o rosto de outrora, e esse não voltaria mais, mas o olhar de ontem, perdido, que vinha se manifestando entre turbilhões de pensamentos confusos e insistentes. A cada segundo deleitava-se mais e mais com as ideias que emanavam de sua razão. Nesse momento era necessário ouvir a voz da tida consciência. Por que se calara antes? Por que nunca dominara as emoções que transbordavam seu ser? Por que Sofia não se ouvira antes…
             Pensamentos que tomavam conta de sua mente e arrepiavam sua pele. Queimava-a por dentro e partia seu coração. Viu seus olhos no espelho novamente e notou: eram castanhos, da cor de seus cabelos, da cor que vira que eram em sua infância. Já podia abri-los, já podia observar mais alto, erguer sua cabeça, olhar para um céu onde tudo é bom. Onde o amor prevalece e a vida possui sentido.
            E era isso que faria. Abrir as asas e voar. Ser outra vez ela mesma, resgatar a beleza de sua alma e não temer o próximo. Nem o próximo que divide o mesmo espaço que deveria se chamar 'lar'. Mas nunca foi um lar, nunca seria. Não dessa forma.
            Quantos anos de cativeiro nos braços da insanidade em uma relação doentia. Depois de muito observar, a completude de seu ser fez-se reintegrada. Unidos os pedaços dela espalhados pela casa, prometeu a si mesma que não choraria mais. Faria aquilo que precisava ser feito, que desejava como um sonho bom.
            E ele entrou pela porta da frente da casa, encontrando-a sentada no sofá. Ele foi seu abismo e sua salvação, seu alimento e sua fome. Teve fome de amor e alimentou-se do gosto amargo da insensatez. Ele foi um refúgio e um delator, uma coroa de espinhos num reino de sofrimento. Nos braços dele encontrou a guerra e perdeu a paz. Ele foi um amigo traidor. A cada toque ríspido em seu corpo, ele tentou mostrar que o amor era dor. E ela o olhava mais e mais, sentada no sofá. Ele foi o atalho que a levou para a escuridão, a ferida mal cicatrizada, o beijo que queimava sua boca e destruía seu coração. Ele era, mas não seria mais.
            Naquele momento, diferente de todos os outros, Sofia sentiu que existia, e nenhuma lágrima caiu do rosto dela. Ele entendeu. Ele não a reconheceu. Ele foi embora.
            E ela permanecera sentada no sofá, respirando profundamente, brindando com a solidão.

   1º Lugar - 2015 - Concurso Regional de Contos, Crônicas e Poesias Oscar Bertholdo

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Borboletas Azuis

Esta é uma história sobre esperança e cura. Sim, a narração de momentos difíceis pelos olhos mais puros possíveis. Boa leitura!

Borboletas Azuis

          Depois de tanto tempo, de tantos dias e noites escrevendo cada página de meu livro da existência, depois de tantas calmarias e tempestades, pego-me admirando o voar das borboletas azuis. Tão pequenas, tão simples e tão frágeis, elas voam num a mesma dança leve, de harmonia e lembranças.
          Estendo minha mão cansada na esperança que algum daqueles seres voadores não tenha medo do novo e agracie-me com a confiança necessária para fazer de meus dedos um cais... Mas o tempo passa...
          Eu era tão pequena quando lembro que entrei na sala onde meus pais conversavam. Daqui a cinco meses seria meu aniversário e, mesmo estando longe, contava os dias para a minha tão esperada festinha de seis anos. Minha mãe, vendo eu entusiasmo, já havia comprado os balões e painéis com fadas para as paredes. Eu já fizera a lista de convidados: Sofia, Carol, Brenda, Bruna, Paulo e Luís (meus vizinhos), a professora Fabiana, meus colegas, meus avós, minhas tias, pai e mãe (eu os incluíra também na lista). Enfim, estava muito feliz naquela manhã de segunda-feira e vi que os dois conversavam num tom de voz bem baixo.
          Logo de início estranhei um pouco que papai não havia ido trabalhar e mamãe, quando fui me aproximando para dar-lhe um abraço forte, estava com os olhos vermelhos. Ela logo ergueu-se do sofá e sorriu, passando os dedos sob suas lágrimas, a fim de que eu não percebesse que existiram.
Ela, naquela manhã, abraçou-me mais forte que o habitual, por mais tempo também. Papai nos abraçou igualmente. Que estranho, será que chegou meu aniversário e eu nem percebera? Dormi tanto tempo assim? Quantas indagações em pouco tempo.
          Mamãe aproximou seus olhos de meu olhar e disse, com sua voz baixa:
         - Querida, vamos fazer uma viagem. Mas não se preocupe em pouco tempo voltaremos para casa...
          -Adoro viajar. Aonde vamos?
          -Para a capital.
       -Vou arruma as malas. – Disse e corri para meu quarto, pois todos os anos realmente conhecíamos um lugar do país diferente, e ficávamos lá por uma semana.
       Geralmente quando nos organizávamos para passear meus pais sorriam bastante, faziam brincadeiras e passavam todos os detalhes possíveis do que veríamos lá. Desta vez o silêncio era cortante. Não lembro de muitos detalhes, sei que, em pouco tempo, estávamos no carro indo até a capital.
         A viagem foi muito diferente das demais. Entramos um prédio branco, muito grande, e logo fiquei com minha mãe numa sala, em companhia de muitas outras pessoas e suas caras tristes. Eu não sabia o que pedir, só queria um abraço da mamãe, e ela me segurou todo o tempo em seus braços. Em pouco tempo, uma moça vestida de branco, falou baixinho com meu pai, que estava no balcão, e nos levou até um quarto.
          Eu deitei numa cama muito confortável, com lençóis azuis e uma parede branca logo a minha frente com um adesivo de crianças e animais interagindo felizes. Na janela, uma grande árvore surgia, repleta de botões prontos para florirem.
         Meus pais ficaram um em cada lado da cama. Papai acariciava minha mão e mamãe alisava meus longos cabelos. Em pouco tempo ela começou a me explicar.
        -Filha, essa é uma viagem diferente. Nós não vamos apenas conhecer um lugar novo, nós estamos participando de um teste. Bem, é como se fosse um trabalhinho que o Papai do céu pediu para nós fazermos. A professora da escolinha não pede alguns trabalhinhos para que você faça?
          -Pede – Balancei a cabeça positivamente.
         -Então, às vezes Jesus também pede que nós façamos alguns trabalhos, e se Ele nos pediu, é porque conseguiremos fazer direitinho. Filha, você está com um probleminha aqui - ela passou os dedos levemente sob as minhas costas – mas vamos conseguir vencer. Quando Deus achar necessário, nós iremos para casa.
         - A forma com que minha mãe pronunciou cada palavra me transmitiu tanta calma que não deixei de acreditar um só minuto que tudo daria certo.
          A partir dessa conversa os dias foram passando e o tratamento acontecendo. A primeira semana foi monótona. As moças de branco me conduziam para fazer exames clínicos, eu retornava para meu quarto. Todas as pessoas me tratavam muito bem, e uma vez por dia eu podia ir para uma sala com outras crianças, cada uma com seu soro e suas esperanças. Lembro que brincávamos com frequência que o suporte do soro era nosso cetro, e todos nós morávamos num castelo e pertencíamos à realeza, e o hospital era nosso reino encantado.
          Outra lembrança feliz que tenho dessa época é o amanhecer. Quando o sol começava a surgir no horizonte, várias borboletas enfeitavam os galhos da árvore próxima à janela, e ficavam dançando por um tempo. Eram várias cores formando uma aquarela de vida diante de meus olhos: amarelas, vermelhas, pretas e azuis. Essas últimas eram minhas favoritas, tão brilhantes e singelas que despertavam minha maior admiração. Em alguns momentos estendia meu braço, cheio de agulhas e canos, na esperança de ver mais de perto a vida. Mas não fazia mais que isso. Certos dias estava me sentido muito mal, mas aquele momento auxiliava para me consolar.
          Durante o tratamento não entendia a gravidade de minha doença, e agradeço a meus pais e familiares por não terem me feito enxergar essa face dos acontecimentos. Porém sempre fiquei pensativa sobre a razão de algumas crianças serem carecas, mas não tinha coragem de perguntar. Isso era como se fosse um mistério que eu não queria desvendar.
            Um dia recebi em meu quarto o cabeleireiro da família. Quanto tempo! Ele era muito querido, sempre entregava balas após o corte de cabelo. Minha mãe não falou uma palavra, mas logo senti que eu me tornaria mais uma daquelas crianças diferentes da sala de brinquedos, e comecei a chorar. Minha mãe então falou:
          -Fique calma, estou aqui... Isso é necessário. Depois que sairmos do hospital pode ter certeza que seu cabelo crescerá bem mais bonito que está...
          Aquele momento foi o mais forte que lembro. Meus pais fizeram um árduo trabalho para que eu pudesse ver essa situação de forma positiva. Três vezes por semana papai trazia lenços novos para que eu estivesse sempre linda. E eu adorava cada um que ele trazia.
          E o tempo continuou passando. Lembro que adorava olhar para a janela, em especial a planta florida e suas visitantes. O voo delas me tirava da inércia de estar numa cama a tanto tempo. Sobre meus anjos, ninguém nunca chorou na minha frente, mas eu sentia que certos dias meus pais estavam mais cansados que outros.
         Uma tarde, quinta-feira, o médico e as moças de branco entraram em meu quarto e de repente apaguei. Lembro que acordei no mesmo lugar em que adormecera. Quando abri os olhos todos estavam ao meu redor, com balões e presentes. Era meu aniversário novamente? Provavelmente não, já havia o comemorado no hospital. Mamãe colocou todos os balões e adesivos que havíamos comprado na sala de brincadeira e festejei passando a tarde com meus amigos do castelo.
         - Parabéns, filha, você conseguiu vencer!
         Quase nem acreditei: eu conseguira vencer, estava curada e finalmente podia ir para casa. Nesse dia todos choramos juntos, pois o trabalho que Deus havia nos pedido para realizarmos fora concluído. Eu não via a hora de voltar para minha casa, minha escola, minha vida.
         Mamãe e papai arrumaram as malas com toda felicidade do mundo e, antes de sair do quarto, olhei pela última vez para a árvore e as borboletas. Timidamente acenei, dizendo adeus para aquelas que foram minhas companheiras em toda caminhada.
          Tanto tempo... Tantos dias e noites escrevendo cada página de meu livro da existência... Tantas calmarias e tempestades... Mesmo depois de tudo, um sentimento não mudou: continuo admirando o voar das borboletas azuis. Mas não mais daquela janela do hospital, mas nas flores do meu jardim.
          Hoje ainda sinto o mesmo apreço que sentia quando menina ao olhar a dança desses bichinhos tão delicados. A doença, o hospital, as moças de branco, o médico, as crianças, minha festa de aniversário de seis anos, meus pais, meus colegas, todos eles viraram borboletas azuis, que preencheram a minha vida e precisaram voar.
          Nesse dia tão lindo de primavera recebo meus netos em meu jardim, fazendo questão de mostrar todas as flores, seus perfumes e suas borboletas, para que eles nunca se esqueçam de que a vida é mais forte que tudo; que mesmo depois do inverno tudo renasce mais forte e bonito.
              …...
           Suspiro... Uma voz de criança chama a avó para que entre na casa. Lentamente, Bárbara ergue-se e, passo a passo, segue para ver o que se trata. Em meio ao sol de primavera, trânsito movimentado, ruídos de anúncios publicitários, vozes de conversas pelas calçadas, uma borboleta azul pousa, delicadamente, despretensiosamente, em seu ombro.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Leituras (é o título do conto)


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                - Não vou passar um tempo na casa da minha avó. Ficar ao lado daquela velha, me poupe. Me poupe, mãe.
            -É só por esta tarde, Ana. A cuidadora precisa se ausentar. Faça isso ou corto sua mesada toda de maio.
            -Afff, né. Uma tarde dos meus quatorze anos jogada no lixo.
            A viagem até a casa da senhorinha foi num clima desagradável. Mãe e filha não trocaram uma palavra sequer. Rapidamente a adolescente foi deixada no portão da velha casa de madeira e ouviu o som do motor do carro ficar rapidamente distante, até dissipar-se no ar.
            Saco, pensava ela. Preferia ficar em casa gravando seus vídeos para as redes sociais, com seus relatos da escola, baladinhas e amigos.
            Bateu na porta e logo esta foi aberta por sua avó Lúcia.
            -Entre, minha neta.
            -Obrigada.
            -A vovó estava revirando alguns álbuns de fotografia antigos. Você deve pensar que é bem coisa de velho.
            A vontade era responder que sim, e que ela a deixasse ficar em seu celular passando as cinco longas horas em paz. Mas Ana disse:
            -Não é não.
            Em silêncio, a senhora folhava devagar as páginas do poeirento álbum. Ana podia ver fragmentos de pó pelo ar iluminado por uma fraca luz do teto. Mania de casas antigas serem escuras.
            Dentro da caixa mais dois compilados de imagens repousavam. A adolescente resolveu pegar um e começou a observar. Tantas imagens estranhas, muitas em preto e branco, outras em cores e definições muito ultrapassadas.
            -Sente-se aqui ao meu lado, Aninha. Venha olhar comigo.
            Um tanto desconfortável, mas ao mesmo tempo curiosa, ela sentou próxima a avó.
            -Querida, atrás de cada fotografia tem o registro escrito de quem estão nelas, onde e em que momento. É só virar e ler.
            Ana ficou olhando para o rosto de Lúcia e não fez nada além de dar um sorriso. “Simples, por que essa chata não faz isso? O que ela quer?” Pensava...
            Quem escreveu foi sua mãe, quando tinha um pouco mais que a sua idade. Eu falei pra ela. Eu não sei ler.
            “Minha avó não sabe ler? Todos sabem ler? E então, pra que uma estante de livros na sala?” Com os olhos úmidos, a senhorinha olhou nos olhos da neta e disse:
            -Eu só trabalhei, desde pequena. Trabalhei muito e muito para que sua mãe conseguisse voar mais alto que eu no interior. Eu sempre quis aprender a ler, mas hoje tenho até vergonha de revelar isso. Só sei escrever meu nome. Vou contar um segredo: algumas noites abro um desses livros e fico passando meus dedos sobre as letras, só para imaginar todos os universos de cada linha. Não consigo nem pegar um ônibus, e desde que me mudei para a cidade, dependo de alguém pra me guiar. Olha esta foto: é sua mãe bebê nos braços... Não lembro mais quem era ele...
            -Vó – falou a neta virando a fotografia – aqui diz que é o tio Renato no pátio da casa de Antonela.
            -Antonela! A vizinha da tua bisavó. Verdade.
            -Esse bebê também é minha mãe? Que engraçada, toda suja de terra.
            -Sim, é ela. Mas eu não lembro onde...
            -Deixa eu ler aqui... Na praça da cidade. Que diferente!
            -Sim, muito. Aquelas plantas nem existem mais.
            ....
            E aquela tarde foi o período que passou mais rápido dos últimos anos. Neta e avó iluminaram o ambiente enquanto ambas liam, cada uma a sua maneira, o passado, o presente e um futuro de mais e mais luz.
            Seis da tarde, ou dezoito horas, uma buzina toca em frente a velha casa de madeira. Era a mãe para buscar Ana.
            Mas, antes de ir embora, a avó segurou a mão de sua neta e mostrou-lhe um maço de folhas amareladas.
            -Essas são as cartas de amor que seu avô escrevia para mim. Todas as quartas-feiras, Beatriz, a moça que fica aqui comigo, lê uma para mim. Eu não aguento mais a dor de só reconhecer um papel riscado em cada página. Leve-as e dê o destino que quiser.
            -Vó..Olhe para mim...Todas as quartas-feiras, como hoje, eu vou vir aqui e vou lhe ensinar a ler.
            Ambas se abraçaram forte e a partir daquele momento, todas as quartas-feiras, ambas aprendem e ensinam, uma a outra, a lerem. Uma as palavras, frases e parágrafos. Outra as pessoas e a própria vida.
           

sábado, 28 de março de 2020

ÓBVIO

Acabou de sair da minha mente. Sobre amor... Mas não é óbvio....





      Como o ônibus demora para chegar…
     -Que horas são?
     -Deixe eu ver…
     Coloco a mão em meu bolso, tento pegar meu celular para ver a hora. Meu bolso é apertado, do lado direito (sou destro). Apertado como o que sinto no peito. A mão imerjo no jeans da mesma forma que invado a pele escondida pela camiseta de botões, branca, de Lavínia depois do expediente. E ela sorri, olhando em meus olhos. Mas está difícil de puxar meu eletrônico. No fundo não quero ver que está perto da hora de chegar o ônibus. Não era para ser assim.
      -Mandou fazer o celular?
     -Já vai. Que horas que o ônibus parte?
     -Dezoito e dez.
     Dezoito e dez, segunda-feira. Feriado. O Rio de Janeiro inteiro comemorando o Carnaval e nós dois, os escravos da vez, escolhidos para recebermos reclamações das Rações Vitt. Porra, reclamamos do trabalho o dia inteiro, mesclando com comentários carnavalescos.
     -Dérick, sabia que eu torço pra Beija-Flor?
Você é delicada e linda como um pequeno beija-flor, ah se soubesse como amo seus cabelos ruivos crespos, na altura dos ombros. Você tem um sorriso iluminado e vulgar, ressaltado pelo batom marrom. Eu vejo você andando pelo corredor da empresa, te admiro sentando ao meu lado e colocando sua maçã delicadamente ao lado da tela do computador. Coloca seus fones e aproxima o pequeno microfone de sua boca. Vejo a nós dois, abraçados, nus, imergindo e voltando na praia do Flamengo. Afundamos unidos pelos lábios, que salgam nossa saliva, emergimos buscando o mesmo oxigênio. O céu está escuro, chove, ninguém nos vê.
     -Dérick, hello? Você torce pra quem?
     -Salgueiro.
     A árvore símbolo da imortalidade na China, acho que não faz flor pra você, meu beija-flor, sugar. Ah como ela me suga a cada olhar.
     -Ninguém liga pra reclamar de rações numa segunda de Carnaval. Que empreguinho de merda temos. - Disse Lavínia realmente irritada.
     -Melhor que nada.
     -Sabe, acho que deveríamos montar nosso próprio negócio, o que você gosta de fazer?
     -Cozinhar. Me amarro em cozinhar.
    -Hum, não conhecia esse seu dom. Eu também gosto de cozinhar, mas sou péssima com sobremesas. Quem sabe termos um foodtruck de cachorro-quente? Deve ser fácil.
     -Deve ser. Vamos conversando sobre isso.
    Continuamos falando sobre diferentes opções de cachorros-quentes, molhos, acompanhamentos, condimentos até o final do expediente. Rimos muito. Temos o mesmo canino torto do lado esquerdo, e eu acho isso muito real, concreto.
    Às cinco e meia nosso chefe chegou para saber como foi o dia, bêbado acompanhado por uma moça que ficou no corredor vomitando junto ao capacho na entrada. Mal Lavínia começou a falar, ele gritou “tá bom, saiam pra eu trancar essa senzala”.
     Descemos as escada, três lances, sem sabermos o que falar, mas na calçada trocamos adjetivos como “bizarro, ridículo, loucura, sem noção” em diante.
     Naquele dia esperei ela pegar o ônibus para casa. Ele chegou mas a gente não embarcou. Não.
     Fomos ver o pôr do sol na praia do Flamengo, próxima ao escritório.
      Sentado na areia, vimos todas as pessoas ao nosso redor no ritmo da festa. Turistas lotavam a areia, mas conseguimos um pequeno lugar para sentarmos. Eu, em pensamento, mergulhava com ela no mar a minha frente. Ela se molhava e suas roupas ficavam transparentes. E agarrávamos. Eu podia sentir a pressão de cada dedo dela nas minhas costas.
     -Por que o que é óbvio não é fácil de ser dito?
     -Lavínia, acho que temos medo que aquilo que pareça óbvio pra nós seja um enigma para o outro.
     -Dérick, eu gosto de enigmas.
     -É.
     Um vendedor passa por nós oferecendo água, cerveja ou guaraná. Compramos duas cervejas e conversamos, bebendo um pouco mais.
     -Um foodtruck Dérick. E nunca mais teremos que atender a reclamações sobre ração de cachorro.
     -E nem aturar um chefe bêbado gritando conosco.
     Rimos. Nos olhamos. Ela larga o ar bem devagar e fecha os olhos, depois volta sua cabeça para o oceano e contempla. Eu a contemplo e também volto meu olhar para o oceano. Para nós no oceano.
     -Sabe, Lavínia, sempre quis ter uma namorada que topasse protagonizar cenas de amor no mar.
     -Hum, depravado. Eu já fiz isso.
     Não falo nada, mas, de certa forma, eu também.
   -Somos seres óbvios demais, Dérick. Nos conhecemos e sabemos tanto sobre nós, mas não conseguimos trazer de dentro para fora. Metade de nós permanecerá sempre presa dentro da gente. E sabe o que nos mantém encarcerados na gente mesmo? Medo e os outros. Não somos quem realmente somos porque a cela é feita de bocas e olhos dos outros.
     -Você é muito inteligente, Lavínia.
     -Obrigada. Eu nunca protagonizei cenas de amor no mar...
     -Dezoito horas. Agora são dezoito horas.
    Lavínia está cheia de malas, sua viagem não parece ter um retorno e eu tenho muito medo de perguntar. Muito, porque a gente teme ouvir a verdade às vezes, em especial quando você já quase tem certeza qual é. Beija-flor, uma ave de voo rápido e ágil, não pode se prender a uma única flor. Ele semeia, fertiliza, mas vai embora. Eu queria ter pego a mão de Lavínia na beira da praia, e queria ter imerso minha mão sem sua blusa branca de botões naquele dia de Carnaval. Mas era óbvio, e esse foi um problema.
     Não conseguimos falar nada um com o outro naquela rodoviária cheia de gente. Ela olha fixamente para a passagem. Não está sorrindo. Eu não consigo ter a força das ondas do mar que aquela boca desperta em mim ao falar no microfone, comigo, morder sua maçã de forma irregular ou afundar comigo no mar do Flamengo. Por que é tão óbvio? Por que é difícil?
     No mar, agarrados, eu seguro sua cintura e sua nuca, prendo seus lábios nos meus e chove em nós. Mas não a deixo ir. Não a deixo ir. Não quero que ela vá.
     -Chegou o ônibus. Obrigada por esses anos de amizade. Obrigada.
     -Lavínia, eu que agradeço.
     E a gente só se olha, com o canto da boca descendo, a mão suando, a perna mole e eu me vendo naufragar sozinho nas ondas violentas do mar. Ela segue, sobre as águas e some ao adentrar o ônibus.  Ela senta próximo à janela, me olha e vejo que seus olhos se enchem de lágrimas. Lá vai ela de volta para o interior de Goiás, com a família que precisa dela.
     Lavínia ergue uma folha de papel com duas palavras.
     “Era óbvio.”