segunda-feira, 11 de março de 2019

O herói



Sim, ele era meu herói. No dia em que ele surgiu na minha vida, nada estava eu a esperar. Sentada no banco do ônibus, observava pela janela a metrópole acordar. Todos os dias inéditos no calendário, mas iguais para mim. Acordar, embarcar, desembarcar, trabalhar, embarcar, desembarcar, dormir.
E como todo herói percebeu que ali estava, vazio, o banco ao meu lado e minha alma naquele dia. Sentou-se perto de meu corpo e pouco virou seu olhar para mim. No trajeto até o centro, paramos na rodovia. Nenhuma explicação do motivo, nenhuma previsão de continuidade.
O meu herói, camiseta preta e calça jeans, tentou dormir ao meu lado, mas não o fez. Não era bonito, nem alto e forte. Mas, pouco importou.
De repente conversamos sobre o que não importava, sobre o que não nos pertencia, sobre o que precisávamos conversar num ônibus lotado.
            Em dois meses estávamos morando juntos. A família nunca reconheceu os poderes mágicos que ele possuía. Não entenderam. No dia em que sai de casa, deixei minha mãe e meus irmãos naquela pequena casa de madeira, e fiz questão de não olhar para trás.
            Logo estávamos em nosso castelo de alvenaria, numa floresta de concreto vertical. Mas, a cada beijo intenso, e carícia em meu corpo, tinha certeza que estava salva num castelo especial para nós dois.
            Larguei meu emprego, afinal, como ele dizia, princesas não precisavam trabalhar. Mantinha organizado nosso pequeno lar, tudo para agradar meu salvador nos momentos em que estava comigo. Mas, a rotina cruel nos mantinha cada vez mais distantes.
Meu herói dizia que ficava fazendo horas-extras no trabalho para poder colocar o arroz e feijão nos nossos pratos. Que o gato da luz nunca seria um problema, que sobreviver no morro era fácil para quem sabia as regras. Também dizia que era frescura desejar tantas coisas, no final, estar em seus braços era um grande presente.
            Toda a noite ele chegava tarde. Eu o esperava com o jantar aquecida, mas meu herói nunca comia, ia para cama cansado e dormia até o novo dia. Eu sei que não precisava, mas chorava baixinho para que ele não fosse interrompido com meus lamentos fúteis. Como era boba, sentir a dor de um vazio que não tinha razão de ser.
            O trabalho começou a sugar, como um grande dragão em chamas, os finais de semana que passávamos juntos. Sábados na loja de departamentos até tarde. Domingo participando de treinamentos para aprimorar-se na difícil lida laboral. E a solidão foi ocupando cada espaço de nossa casa, como um vilão poderoso e difícil de ser capturado.
            Um dia questionei meu ídolo sobre a distância entre nós. Sei que errei, fui uma tola. Mereci a mão pesada e fria em meu rosto. Doía mais que a solidão, mais que o olhar de meus familiares no dia em que saí de casa. E essa dor tornou-se mais presente, a cada madrugada em que o esperava acordada para pedir como havia sido o dia.
            Queria auxiliá-lo em suas missões, propus enfrentar com ele a batalha pela sobrevivência e voltar a ocupar um cargo em alguma empresa. Ele queria me preservar, uma dama como eu não deveria se expor a tantas pessoas insensíveis e perigosas. Expor-se sozinho à selva de concreto era suficiente.
            Tinha medo de sair, aos poucos acreditei que colocar o pé fora de casa poderia ser fatal. Minha companhia era a pequena televisão, que mostrava um mundo tão distante que nem conseguia mais compreender. Meu herói sabia de tudo, estava a frente de minhas crenças ingênuas. Nunca duvide, acredite e siga as regras.
            E então ele fez seu ato mais heroico para comigo. Naquela noite, entre afetos cortantes, perdi minha mobilidade das pernas. Mas ganhei asas.

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