A Radio Putzgrila (recomendo muito!) Fez a narração do conto A TERAPIA. Acessem o link abaixo e confiram:
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
18+ A TERAPIA
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Essa terapia me fará um psicólogo conhecido no mundo todo – suspirava Allan, encantado
ao ver as pacientes, sentadas em círculo, na sua ampla sala de estar. Uma
mistura de adrenalina e odores tornava, para ele, o espaço denso e acolhedor.
- Acho que eu sou a única pessoa neste
mundo que ainda gosta de músicas antigas. Doutor, o senhor pode colocar a
canção “Dream a Little Dream of Me”? Adoro a voz de Louis Armstrong.- Era a
canção que ela estava ouvindo na padaria, onde tomava seu café da manhã, antes
de aceitar a proposta do psicólogo.
Allan ajeitou seu paletó (“preciso
comprar um que se ajuste melhor ao meu corpo, este está largo”) e colocou na
vitrola o velho disco de vinil para rodar. Depois, voltou a aquecer o bule com
café no fogão improvisado (“daqui há alguns anos, estarei num lugar bem mais
confortável que aqui”).
- Eu não gosto dessas músicas velhas,
eu prefiro pop music, como Madonna e Lady Gaga – retrucou Laura, enquanto segurava
uma lixa, exibindo suas unhas vermelhas com o esmalte corroído pela rotina de
lavar pratos na lanchonete. Em outros dias, no vespertino, estaria nas ruas
fazendo programas para completar o orçamento, mas na semana anterior foi
convencida que a terapia era de extrema necessidade para ela.
– Me sinto na casa daqueles clientes velhos e
carentes, fedendo a mofo e tocando canções esquecidas – continuou a jovem.
- Eu desprezo totalmente sua
profissão. Você é bonita e parece ser inteligente, deveria fazer algo mais decente
do que, Deus me perdoe, vender seu corpo. – Lívia tinha pavor só de imaginar
que a moça a sua frente praticava tamanhas obscenidades, e rezava em pensamento
todas as vezes em que Laura relatava detalhes mais íntimos. De tanto apertar o
terço em suas mãos, seus dedos já estavam marcados pelas bolinhas de plástico.
Talvez Allan estivesse certo quando, na saída da igreja, a convenceu a
participar do tratamento.
- Continuo achando que... A presença
de Nataly... Não é adequada. Quantos anos... Você tem... Querida? – perguntou
Ana, a jovem estudante de fotografia que estava sentada entre a menina e Laura.
- Tenho doze.
- O que você... Está desenhando?
- Meu urso – exibindo seu caderno
aberto para Ana, mostrou um esboço do que seria realmente o brinquedo referido.
- Vai ficar muito... Lindo quando... Terminar.
- Obrigada, mas acho que vai demorar.
Meus olhos doem.
As duas estudantes estavam na parada
de ônibus quando viram que a vida poderia ser mais leve, e ganhar um novo
sentido através da terapia do recém-formado.
- Boa tarde meninas, vamos começar
nossa sessão?
Allan sentou-se na roda. As pacientes
permaneceram imóveis.
- Vejo que hoje vocês estão bem mais
entrosadas que ontem. Fico feliz com isso. Neste segundo encontro quero ouvir
mais sobre as dores de cada uma. Antes disso, alguém aceita café?
As diversas vozes femininas pelo
cômodo ecoaram um pouco mais altas que o som da música que tocava, numa
negativa única. Mesmo assim, sabendo que Nataly adorava a bebida, foi até a
jovem e a vez beber uns goles.
- Cuidado para não se sujar – advertiu
o psicólogo, passando o dedo no canto inferior dos lábios da estudante.
- Estava muito bom. Agradeço.
- Sabia que iria gostar. Estão
gostando desta canção que está rodando?
- Sim, psicólogo. Eu adoro a atmosfera
que ela cria na sala...
- Certo, Amélia. A propósito, você,
assim como as demais, está muito bonita hoje.
- Obrigada.
- Mas eu teria escolhido um batom mais
chamativo, uma cor mais quente quem sabe. Acho que este tom escuro não ficou
tão bem. Permita-me.
O jovem colocou a xícara de café na
mesinha ao lado, e dirigindo-se até Laura pegou um batom vermelho de sua bolsa,
passando com cuidado nos lábios de Amélia, sentindo a textura da pele e vendo a
transformação ocorrer.
- Acho que fiquei bem mais bonita
agora. Obrigada, doutor.
- De nada. Bom, Lívia, vejo que você
está quieta hoje.
- Estou em sintonia com meu Deus.
- Então quem sabe você pode ser a
primeira. Onde dói?
- Viver dói. Nossos sonhos são
espedaçados com a facilidade que arrancamos um fio de cabelo. Eu sinto dores
nas Cinco Santas Chagas de Cristo. Sinto os meus pulsos e pés como se
estivessem sendo perfurados, e meu peito rasgado. Na verdade não consigo mexer
meus pés.
- Lívia, quem sabe o seu fanatismo
religioso está fazendo com que sinta isso.
- Ela é louquinha. Falta é sexo, dos
bons – interrompeu Laura, que pousava as mãos em seus mamilos sob a blusa erguida,
justinha, que os cobriam. – A propósito, só eu que estou sentindo uma sensação
gelada no abdome?
- Minha Nossa Senhora – a cristã fazia
o sinal da cruz e apertava mais e mais o terço.
- Garotas, por favor. Vamos
prosseguir. Nataly, onde é sua dor?
- Eu sinto dificuldades para
respirar... Sinto meus pulmões rasgando... Cada vez que puxo o ar. – E enquanto
se esforçava para entoar as palavras, observava pela grande janela, como um
pássaro planejando novos vôos.
- Ontem você disse que ficou muito
assustada quando viu as imagens que retratavam a punição nórdica da Águia de
Sangue. Será que teria algo a ver?
- Não me faça... Lembrar delas. Quanta
dor essa gente... Deve ter sentido ao ter suas costelas... Separadas da coluna
vertebral... E seus pulmões estendidos... Para fora do corpo? Quanta dor! – A jovem
estudante permanecia estática. Allan aproximou-se dela e apertou seus ombros
pelas costas. – Você vai ficar bem. Vai alcançar as estrelas com sua arte.
- Obrigada... Doutor...
- E você, Amélia, o que dói? – O
psicólogo percebeu que as marcas roxas pelo seu próprio corpo incomodavam, mas
a prioridade era as pacientes. Ele ficaria para depois.
- Eu não sei, parece que dancei por
horas a fio. Minhas pernas latejam e meu pescoço parece que vai deixar minha
cabeça cair de tanto que ela pesa. Mas minha maior dor é na altura das pregas vocais.
- Nos últimos dias você discutiu com
alguém? Falou o que não devia?
- Não lembro, doutor. Me sinto tão
deslocada neste mundo. Parece que não me encaixo em grupo nenhum, que nasci na
década errada. Pouco falo.
- Estranho.. Laura, sua vez.
- Eu sinto dor na minha barriga, como
se eu tivesse passado por uma cesariana sem anestesia.
- Você já teve filhos?
- Não. Estou grávida. Eu ainda não
decidi se quero ou não continuar com a gravidez. Como vou sustentar? Eu nunca
deveria ter aceitado aquele programa sem camisinha. Mas eu não tive escolha: ou
isso ou ser jogada na rua.
- Eu repito, você deveria fazer outra
coisa da vida.
- Lívia, você já teve sua vez de falar.
Continue rezando. Ou melhor, me dá este terço.
Allan imaginou Laura levantando da
cadeira e, tomando o objeto em mão, enfiando-o em sua boca, deixando apenas
Cristo pendurado pelo lado de fora, balançando-o com a língua. Mas antes que
isso pudesse acontecer, foi até Lívia e certificou-se que o terço estava firme
entre os dedos dela.
- Então Ana, quer falar o que dói?
A menina encolhida sob a cadeira,
abraçando seu caderno contra o peito, nada dizia.
- Pode falar, menininha. – O jovem
ergueu-se e ajeitou o laço que enfeitava os cabelos molhados da pequena.
- Eu sinto dor nos olhos e entre as
pernas.
- Acho que você está desenhando
demais.
- Pode ser.
- Minha querida, é normal sentir dor
quando a menstruação chega. Você está menstruada? – perguntou Amélia.
- Estou sangrando.
- Então deve ser isso.
A tarde terminara e a noite reinava
sobre a cidade. Milhões de estrelas se exibiam pela grande janela da cobertura
onde estavam. A lua cheia iluminava quase tanto quanto a luz do apartamento.
Como era bom ser o único habitante daquele prédio, e estar tão perto de Deus e
longe dos homens. Ainda faltava muito para chamar a casa de lar, mas em boa
companhia, qualquer espaço decadente se torna aconchegante. Allan sabia que
elas seriam curadas na terapia que tanto defendeu durante seus estudos.
E ele começara a sentir fome. Quase
onze horas da noite, deixou a roda e foi buscar um pedaço de pizza fria, resto
do dia anterior.
- Vocês querem?
A agulha se recolhera no toca discos, o
silêncio reinava. Amélia dormia com sua cabeça pendendo entre os joelhos.
Nataly observava o encanto do céu estrelado, com os braços suspensos e abertos.
Lívia mantinha-se numa oração secreta, Laura exibia seu ventre, que, após saber
da gravidez pela boca dela, chamava mais atenção para o jovem psicólogo e Ana
dormira abraçada ao caderno, com o sangue escorrendo pelas coxas, joelhos,
tornozelos e pés, manchando o tapete da sala.
- Coitadinha de vocês – ele pensou.
(Barulhos de passos distantes pela escadaria
do prédio.)
- Meu coração sofre com as dores de cada uma.
(Os passos vão se aproximando cada vez mais.)
- Descansem, amanhã temos mais uma sessão de
terapia.
Com um forte chute, a improvisada porta de
madeira foi ao chão. Policiais fortemente armados invadiram o apartamento e
viram, sentadas em cadeiras dispostas em círculo, quatro mulheres e uma menina
mortas, uma com o pescoço cortado após ser obrigada (segundo laudo posterior) a
dançar por horas sem parar a mesma canção, seminua. Outra foi executada
conforme os ferimentos de Cristo, tendo os pés pregados em um pedaço de
madeira. A dançarina desaparecida da boate Sedução teve sua barriga aberta e
morreu de hemorragia. Seu feto estava jogado ao seu lado. A estudante de fotografia
foi transformada numa Águia de Sangue, e estava sentada bem próxima a estrutura
da janela, que já não tinha vidros. A criança teve seus olhos arrancados com
facas e foi cruelmente profanada após a morte. A noite estava estrelada, a lua
cheia iluminava santos e pecadores.
Ao ser conduzido para fora do apartamento,
Allan tentou despedir-se das pacientes, mas conforme mais policiais e
investigadores entravam, não conseguia vê-las, e isso partia seu coração. Elas
precisavam dele, não podia abandoná-las assim.
- Eu voltarei, garotas. Eu ainda vou curar as
dores de cada uma de vocês.